Velázquez: “Las Hilanderas” e a mitologia

Las Hilanderas, de Velázquez. Fonte: Wikimedia Commons.

O quadro “Las Hilanderas” foi pintado pelo artista espanhol Diego Velázquez em cerca de 1657. Atualmente, compõe o acervo do Museu Nacional do Prado em Madrid e já possuiu diversas interpretações ao longo dos anos. Segundo o historiador José Manuel Pita Andrade (1992), apesar do quadro ter sido classificado no inventário Don Pedro de Arce como uma pintura sobre o mito de Aracne em 1664, essa interpretação mitológica foi esquecida nos séculos posteriores. Esse autor realiza uma retomada da trajetória interpretativa do quadro, que será resumida a seguir.

Durante os séculos XVIII e XIX, o quadro foi interpretado como um retrato realista de uma fábrica de tapetes, tendo sido inaugurado no Museu do Prado em 1819 como um momento da vida cotidiana. Foi nas quatro primeiras décadas do século XX que os historiadores da arte passaram a retomar interpretações místicas do quadro. Em 1903, Ricketts identificou que a imagem formada na tapeçaria ao fundo do quadro é a representação feita por Ticiano do rapto de Europa. A partir disso, em 1940, Enriqueta Harris sugeriu a presença de Atena e Aracne na pintura de Velázquez – já que, no mito, Aracne escolhe retratar em sua tapeçaria as aventuras amorosas de Zeus. Essa interpretação foi reafirmada por pesquisas de diversos outros historiadores da arte, como Diego Ângulo Íñiguez, e até hoje no Museu do Prado se apresenta o quadro como uma representação do mito de Aracne – apesar de ainda haver interpretações diversas sobre quais das figuras representam as duas mulheres do mito.

No mito, registrado por Ovídio, Aracne é uma humana extremamente talentosa na arte de bordar e tecer. Suas tapeçarias são tão impressionantes que seu talento passa a ser comparado com o da deusa Atena. A mortal, extremamente orgulhosa, decide desafiar a deusa para estabelecer definitivamente quem era melhor tecelã. Na competição, Atena representa em sua tapeçaria os deuses do Olimpo todo poderosos e o destino trágico dos humanos que ousaram desafiá-los. Aracne, por sua vez, escolheu representar as aventuras amorosas de Zeus, entre elas o rapto de Europa. Ofendida pela temática e pela qualidade do trabalho, Atena transforma Aracne na primeira aranha, condenando-a a tecer eternamente com fios sem cor.

Javier Portús Perez, historiador e chefe do Departamento de Pintura Espanhola do Museu Nacional do Prado, comenta essa obra de Velázquez em dois vídeos no canal que o museu possui no youtube. A obra é apresentada como um posicionamento de Velázquez em defesa da classificação da pintura como atividade intelectual. No período em que a obra foi produzida, discutia-se acerca da tradição artística e, ao representar o mito de Aracne, Velázquez traz um argumento importante a favor da arte. Segundo Javier Perez, os mitógrafos do século XVII viam nesse mito uma mortal que consegue competir e até mesmo superar uma deusa por meio da arte. Os humanos, portanto, possuem na arte uma capacidade infinita de progresso, sendo esse o único meio no qual podem se igualar aos deuses.

É interessante notar, portanto, como a memória em relação aos mitos clássicos vai sendo ressignificada durante a história. Enquanto, em sua origem, o mito de Aracne talvez fosse lido como uma lição sobre os perigos do orgulho e de desafiar os deuses; no humanismo espanhol do século XVII, ele pôde ser lido como um atestado da capacidade artística humana. O verdadeiro interesse de Velázquez ao pintar o quadro é inatingível para nós hoje, mas o estudo de como ele foi recebido e interpretado através dos séculos e os motivos pelos quais determinadas interpretações ganham força em diferentes momentos trazem grandes contribuições para a historiografia.

Referências:
ANDRADE, José Manuel Pita. “Realismo, Mitos y Símbolos em ‘Las Hilanderas’”. In: Cuadernos de Arte de la Universdad de Granada, n. 23, 1992, pp. 245-259.
OBRA comentada: Las hilanderas o la fábula de Aracne, Diego Velázquez. Museo Nacional del Prado, 2016. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=9kAAdkbh6Nw&gt; . Acesso em: 20. out. 2019.
OTROS ojos para ver el Prado: Las Hilanderas, de Velázquez. Museo Nacional del Prado, 2012. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=cJsBWaQIpWc&gt;. Acesso em: 20. out. 2019.

  • Letícia Schevisbisky de Souza

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