
Há uma controvérsia historiográfica de longa data: seria o cristianismo dos primeiros seguidores de Jesus uma prática de excluídos e pobres? Ou seria um movimento já de início hierárquico e com seguidores abastados? Ou ambos? Paulo Nogueira procura escapar dos desafios do dilema por meio de uma metodologia original, o estudo do sistema de linguagem, como sugerido por Mikhail Bakhtin e Aaron Gurevich, tomando a cultura como um sistema semiótico. Considera o cristianismo primitivo, antes do Edito de Milão de 313 d.C., como religiosidade popular, tanto ao se originar no povo, como ao se organizar como religiosidade popular. Assim, Paulo de Tarso, embora letrado e estudado, é considerado como pertencente às classes baixas, como também a literatura extra canônica, como os Atos Apócrifos.
Detecta, ainda, a ousada afirmação de autonomia e autoridade de mulheres no cristianismo paulino. Lançavam mão de imaginação narrativa nas quais invertiam as relações sociais por meio da ficcionalidade, ou seja, do poder de estabelecer relações potenciais, mesmo quando não realistas, por meio da linguagem. Daí relatos fantasiosos, improváveis ou mesmo contrários à experiência, tão comuns nas narrativas mitológicas e populares. Os textos articulavam-se como contra narrativas, a partir de características dos personagens retratados como estrangeiros, de status social baixo, suspeitos de magia, ou de outras práticas sobrenaturais. As narrativas ficcionais afirmavam valores dos grupos subalternos e são subversivas, ao questionarem o status quo. Conclui que as categorias e as formas narrativas da cultura popular por meio das quais o cristianismo primitivo se articulou resistem à mera emulação ordenada e passiva de formas de narrar das elites. Religião de marginalizados e de pessoas desprovidas de poder em sua grande maioria, de pregadores bilíngues, multiculturais, itinerantes, urbanos, praticante de uma religião de conversão e de êxtase religioso, os cristãos formavam um movimento religioso das classes baixas do Império
As objeções à proposta de Paulo Nogueira podem advir de diversas direções, a começar da exegese dogmática ou tradicional, como ele reconhece. Para o estudioso da Antiguidade, haveria outras questões, em particular como lidar com as manifestações de erudição e estudo sistemático, como em Paulo de Tarso, ou a referência, desde o mesmo Paulo, a abastados cristãos, em cujas casas se encontrava a comunidade cristã? Abastados cristãos comiam com não cristãos carne de sacrifícios aos deuses, sempre como menciona Paulo. Ou, então, como acomodar a presença de mulheres atuantes e outras reprimidas, senhoras ricas e pobres excluídas, presentes nas narrativas? Parece que a solução desses dilemas esteja em algo não explicitado por Paulo Nogueira: a sua escolha ética por explorar e valorizar o lado subalterno, popular, do cristianismo antigo. Livro de fácil leitura e linguagem clara, é um convite prazeroso a refletir sobre questões teóricas e metodológicas das mais relevantes, e, também, a conhecer um pouco desse imenso e pouco conhecido manancial literário e cultural antigo. Interessante em si mesmo e, ainda, fonte de reflexão sobre nossa própria época, suas aporias e desafios. Haveria algo mais relevante do isso, ainda mais nos dias de hoje?
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- Pedro Paulo A. Funari