CRENÇA, RELIGIOSIDADE E DEVOÇÃO NO EGITO

Ao pensarmos no Egito, podemos nos lembrar desde as pirâmides até as múmias e os camelos, sobre ele, temos certo imaginário. Contudo, nesse post, fugindo de sua imagem estereotipada, abordaremos um pouco da história desse lugar e um pouco sobre as práticas rituais de uma parcela de sua população, rituais que exprimem crenças e devoções.

Primeiramente, é importante salientar a localização geográfica do Egito, trata-se de um país do nordeste da África, uma região predominante desértica e que inclui a Península do Sinai (Ásia), sendo assim, um Estado transcontinental. Grande parte da população se concentra, desde a antiguidade (10º. Milênio a.C.), nas margens do rio Nilo.

Na antiguidade a religião predominante da região era politeísta, havendo também a presença de judeus. Essas religiosidades influenciaram e foram influenciadas pelas crenças e pela devoção de gregos, macedônios, persas e romanos, povos com os quais os egípcios mantinham bastante contato, inclusive sofrendo invasão por alguns deles durante alguns períodos. Porém, a presença da cultura africana sempre foi muito intensa, principalmente de povos tribais do sul africano e do deserto do Saara que se instalaram perto do Nilo por volta de 8000 a.C.

Em 639 d.C. a região foi tomada pelos árabes muçulmanos sunitas e o califado islâmico manteve o controle do local, isso até 1517 quando foram derrotados pelos turcos otomanos. Já no século XIX o país passou pelo domínio francês e inglês e somente em 1952 conseguiu sua independência.

Diante de tantas interações culturais de povos e etnias distintas, os hábitos egípcios, muitas vezes, possuem influências diversas. Aqui trataremos especificamente de um ritual conhecido como Zaar, indagando sobre a presença de religiões tradicionais africanas.

Ritual Zaar. Imagem: divulgação.

Zaar, ritual de cura e dança dos espíritos

O Zaar é um ritual específico do Norte de África (Egito, Sudão, Somália e Etiópia), originado provavelmente no século XVIII e é proibido pelo Islã, apesar de ser praticado por parte da população mais humilde. Trata-se de um ritual no qual as pessoas, que estão sofrendo com algo, pedem ajuda para conseguir se harmonizar com seu jin (espírito que a estaria “possuindo”). O ritual se inicia com uma exumação, seguida por cantos e danças que levam essa pessoa a um estado de transe. A kodia é a responsável por saber os cantos de cada jin e de propor o tipo de sacrifício adequado para a sua satisfação. O ritual apenas está completo após o consumo do animal sacrificado – essa última é uma característica comum nos sacrifícios da antiga religiosidade grega, por exemplo.

Cada grupo de Zaar se reúne com certa periodicidade, liderados pela kodia e fazendo o ritual de maneira mais privada, familiar, ou com todos os membros do grupo. Antes de ajudar os outros, a kodia precisa estar em harmonia com seu próprio jin, nesse sentido, ela é a primeira a entrar em transe.

O Zaar egípcio é normalmente feito num quarto amplo com um altar. Em qualquer país é importante que o espaço de uso doméstico seja separado do espaço sagrado, ou do lugar de sacrifício. O altar é coberto com um pano branco e empilhado de castanhas e frutas secas. A Kodia e seus músicos ocupam um lado do quarto, e os participantes o resto dele. Os convidados devem contribuir com uma quantia em dinheiro, de acordo com sua posição. Ter uma cerimônia de Zaar pode ser muito lucrativo, mas entende-se que a líder é alguém a quem as pessoas podem recorrer em tempos de necessidade – assim o Zaar serve também como uma sociedade solidária na qual os membros tanto dão como recebem ajuda.

A pessoa para quem o Zaar é preparado pode vestir-se de branco, geralmente uma galabiya masculina, ou saia. Ela usa henna nas mãos e corpo, e kohl nos olhos. Ela também pode ser fortemente perfumada, assim como os convidados. Os instrumentos musicais usados são o tar, um tipo de pandeiro, e a tabla. O número de “ajudantes” vai de 3 a 6; eles dão o apoio rítmico. Durante as cerimônias, os vários espíritos são invocados por sua própria batida de tambor característica.

O Zaar, por fim, não é um “exorcismo”, como geralmente se descreve, porque o espírito é acomodado e conciliado; ele não é exorcizado; ao paciente é aconselhado ser continuamente atencioso com seus espíritos, fazer as tarefas diárias que eles requerem e fugir de emoções negativas. Falhar nisso pode resultar numa recaída.

Esse é um ritual que aplica dança como caminho para o estado de transe. Nele é possível identificar a presença das religiões africanas tradicionais e, também, resquícios de religiosidades e maneiras de devoção mais antigas que remontam aos gregos e egípcios de antes de Cristo. Assim, embora o Egito seja um país predominantemente muçulmano, algumas práticas cotidianas nos mostram que a devoção e as crenças das pessoas passam por diversas esferas culturais.

Referência

MAKRIS. Changing Masters: Spirit Possession and Identity Construction among the Descendants of Slaves in the Sudan. Northwestern University Press: Evanston, 2000.

  • Camilla Miranda Martins

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Um comentário sobre “CRENÇA, RELIGIOSIDADE E DEVOÇÃO NO EGITO

  1. Republicou isso em Vida no Egitoe comentado:
    cAo pensarmos no Egito, podemos nos lembrar desde as pirâmides até as múmias e os camelos, sobre ele, temos certo imaginário. Contudo, nesse post, fugindo de sua imagem estereotipada, abordaremos um pouco da história desse lugar e um pouco sobre as práticas rituais de uma parcela de sua população, rituais que exprimem crenças e devoções.

    Primeiramente, é importante salientar a localização geográfica do Egito, trata-se de um país do nordeste da África, uma região predominante desértica e que inclui a Península do Sinai (Ásia), sendo assim, um Estado transcontinental. Grande parte da população se concentra, desde a antiguidade (10º. Milênio a.C.), nas margens do rio Nilo.

    Na antiguidade a religião predominante da região era politeísta, havendo também a presença de judeus. Essas religiosidades influenciaram e foram influenciadas pelas crenças e pela devoção de gregos, macedônios, persas e romanos, povos com os quais os egípcios mantinham bastante contato, inclusive sofrendo invasão por alguns deles durante alguns períodos. Porém, a presença da cultura africana sempre foi muito intensa, principalmente de povos tribais do sul africano e do deserto do Saara que se instalaram perto do Nilo por volta de 8000 a.C.

    Em 639 d.C. a região foi tomada pelos árabes muçulmanos sunitas e o califado islâmico manteve o controle do local, isso até 1517 quando foram derrotados pelos turcos otomanos. Já no século XIX o país passou pelo domínio francês e inglês e somente em 1952 conseguiu sua independência.

    Diante de tantas interações culturais de povos e etnias distintas, os hábitos egípcios, muitas vezes, possuem influências diversas. Aqui trataremos especificamente de um ritual conhecido como Zaar, indagando sobre a presença de religiões tradicionais africanas.

    Ritual Zaar. Imagem: divulgação.
    Zaar, ritual de cura e dança dos espíritos

    O Zaar é um ritual específico do Norte de África (Egito, Sudão, Somália e Etiópia), originado provavelmente no século XVIII e é proibido pelo Islã, apesar de ser praticado por parte da população mais humilde. Trata-se de um ritual no qual as pessoas, que estão sofrendo com algo, pedem ajuda para conseguir se harmonizar com seu jin (espírito que a estaria “possuindo”). O ritual se inicia com uma exumação, seguida por cantos e danças que levam essa pessoa a um estado de transe. A kodia é a responsável por saber os cantos de cada jin e de propor o tipo de sacrifício adequado para a sua satisfação. O ritual apenas está completo após o consumo do animal sacrificado – essa última é uma característica comum nos sacrifícios da antiga religiosidade grega, por exemplo.

    Cada grupo de Zaar se reúne com certa periodicidade, liderados pela kodia e fazendo o ritual de maneira mais privada, familiar, ou com todos os membros do grupo. Antes de ajudar os outros, a kodia precisa estar em harmonia com seu próprio jin, nesse sentido, ela é a primeira a entrar em transe.

    O Zaar egípcio é normalmente feito num quarto amplo com um altar. Em qualquer país é importante que o espaço de uso doméstico seja separado do espaço sagrado, ou do lugar de sacrifício. O altar é coberto com um pano branco e empilhado de castanhas e frutas secas. A Kodia e seus músicos ocupam um lado do quarto, e os participantes o resto dele. Os convidados devem contribuir com uma quantia em dinheiro, de acordo com sua posição. Ter uma cerimônia de Zaar pode ser muito lucrativo, mas entende-se que a líder é alguém a quem as pessoas podem recorrer em tempos de necessidade – assim o Zaar serve também como uma sociedade solidária na qual os membros tanto dão como recebem ajuda.

    A pessoa para quem o Zaar é preparado pode vestir-se de branco, geralmente uma galabiya masculina, ou saia. Ela usa henna nas mãos e corpo, e kohl nos olhos. Ela também pode ser fortemente perfumada, assim como os convidados. Os instrumentos musicais usados são o tar, um tipo de pandeiro, e a tabla. O número de “ajudantes” vai de 3 a 6; eles dão o apoio rítmico. Durante as cerimônias, os vários espíritos são invocados por sua própria batida de tambor característica.

    O Zaar, por fim, não é um “exorcismo”, como geralmente se descreve, porque o espírito é acomodado e conciliado; ele não é exorcizado; ao paciente é aconselhado ser continuamente atencioso com seus espíritos, fazer as tarefas diárias que eles requerem e fugir de emoções negativas. Falhar nisso pode resultar numa recaída.

    Esse é um ritual que aplica dança como caminho para o estado de transe. Nele é possível identificar a presença das religiões africanas tradicionais e, também, resquícios de religiosidades e maneiras de devoção mais antigas que remontam aos gregos e egípcios de antes de Cristo. Assim, embora o Egito seja um país predominantemente muçulmano, algumas práticas cotidianas nos mostram que a devoção e as crenças das pessoas passam por diversas esferas culturais.

    Referência

    MAKRIS. Changing Masters: Spirit Possession and Identity Construction among the Descendants of Slaves in the Sudan. Northwestern University Press: Evanston, 2000.

    Camilla Miranda Martins

    Publicado originalmente em antigaeconexoes.wordpress.com

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