
Olá, pessoal! Para finalizarmos os textos relativos à recepção e moda, abordaremos hoje a questão da indumentária no Carnaval brasileiro…
Nessa festividade, permanece presente a recepção greco-romana e os diálogos com a Antiguidade. Afinal, as próprias origens do carnaval têm relações com os deuses – como o deus grego da sátira, Momo (Μώμος) – e celebrações antigas – como a Saturnália romana. Os costumes festivos e “desregrados” das festas a Saturno, caracterizavam-na pelo relaxamento da ordem social, mesmo clima adotado posteriormente pela folia do calendário cristão. Não à toa, as relações com a Antiguidade aparecem nas avenidas, revisitando, discutindo e reinterpretando o passado. Na pluralidade dos carnavais, os antigos são recuperados especialmente pelas imagens mitológicas que, ao estabelecer novas conexões, desestrutura e questiona o idealismo dos “clássicos” (SETTIS, 2006). Uma das formas que ocorre a evocação ao passado no carnaval é pela indumentária – os foliões encarnam deuses, guerreiros, reis e monstros através de suas roupas!

Na análise do antropólogo britânico Daniel Miller (2013), o vestuário desempenha papel considerável na constituição das experiências particulares dos indivíduos. Assim, há uma vasta gama de relações possíveis entre o conceito de “eu”, a pessoa, e a indumentária – ou seja, assim como as indumentárias se transformam, os indivíduos também se modificam (MILLER, 2013, p. 61). Exemplo disso é que, durante as comemorações carnavalescas, as roupas (assim como os próprios foliões) são transformadas pelo espírito festivo, adquirindo significações diversas àquelas do cotidiano.
Durante as festas carnavalescas o vestir se torna polifônico, de modo que vários corpos de significados podem coexistir num mesmo indivíduo a partir das representações, das fantasias e do subversivo que incorporam (CUNHA JUNIOR et al, 2020, p. 391-392). O ápice dessa ludicidade insurgente do carnaval brasileiro é o desfile das escolas de samba. Seus destaques de luxo – com opulência e criatividade – emitem discursos políticos, interpretações, anseios e resistências populares. A partir do samba enredo (fio condutor do desfile) é feita a criação e a execução dos figurinos, os quais têm como foco adicionar aos demais elementos informações necessárias ao bom entendimento da história ali contada (BEIRÃO FILHO, 2015, p. 48). Não obstante, há de se cumprir uma série de quesitos predefinidos visando a avaliação dos jurados e premiação que tradicionalmente ocorrem nas maiores cidades do país.
Na avenida, a sexualidade – que cotidianamente costuma ser encobertada e velada (sobretudo aos corpos femininos) – é permitida e celebrada. A indumentária, que normalmente tem como papel pragmático “cobrir” a vergonhosa nudez e demarcar posições na sociedade, durante o carnaval se transforma em uma ferramenta de teatralidade. Os corpos são transpostos para uma outra dimensão: sensorial, cênica e utópica, como explanado por Foucault. “Quando a alegoria vira para exibição, ele deixa de ser indivíduo para ser elemento alegórico, personagem, ator, intérprete” (CUNHA JUNIOR et al, 2020, p. 398).
Ao longo do espaço coletivo da avenida transitam representações heterogêneas, permitindo (a partir das expressões artísticas) a subversão das ordens delimitadas em questões históricas, políticas, sociais, religiosas, sexuais, de gênero, etc. A indumentária das fantasias carnavalescas ratifica essa insubordinação dos enredos, permite a construção e desconstrução de identidades e, extrapolando a mera função estética, chega ao papel simbólico de comunicação (BEIRÃO FILHO, 2015, p. 48).
Questionamentos sociais tais como a relação entre gênero e moda ou os debates acerca dos direitos da comunidade LGBTQIA+ já eram levantados nos carnavais do século XX, sobretudo por figuras como Clóvis Bornay (1916-2005). Bornay – famoso artista carioca – revisitou os padrões de normatividade vigentes, expôs e celebrou as multiplicidades transitando livremente entre as fronteiras do masculino e feminino. Essas transgressões permeadas pela indumentária são características carnavalescas e expõem as rupturas com inúmeros estereótipos. Gênero, raça, sexualidade, metadiscursos e práticas sociais são questionados no Carnaval e, a partir das vestimentas e expressões artísticas, são repensados pelos grupos ditos “marginais” ou “subalternos”.

Referências:
CUNHA JUNIOR, M. R. et al. Trava na beleza: imaginários sobre destaque de luxo de escola de samba. Policromias: Revista de Estudos do Discurso, Imagem e Som, Rio de Janeiro, p. 389-419, dez. 2020.
BEIRÃO FILHO, J. A. Moda e Carnaval: uma abordagem criativa. Revista Moda Palavra e-Periódico, Florianópolis, v. 8, n. 15, p. 35-58, jan./jul. 2015.
MILLER, D. Trecos, troços e coisas: estudos antropológicos sobre a cultura material. Tradução: Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.
SETTIS, S. The future of the “classical”. Cambridge: Polity Press, 2006.
- Felipe Daniel Ruzene