FESTA DA PRIMAVERA: ANTIGUIDADE E CELEBRAÇÃO

Você já se perguntou como surgiram as celebrações de sua cidade? Quais os símbolos e significados conduzidos, através dos tempos, por essas festividades? O post dessa semana dedica-se a apresentar aos estudantes, pesquisadores e entusiastas da Antiguidade Clássica, como a ‘Festa da Primavera’ marcou a sociedade curitibana do final do século XIX e início do XX.

Como parte deste grupo plural e de múltiplas origens, a capital paranaense nos ofereceu, para além de residência, os ingredientes necessários para nutrir a paixão pela História Antiga e suas conexões com o presente.

CURITIBA E A APOTEOSE DA NATUREZA

A Festa da Primavera, culto idealizado pelo príncipe dos poetas paranaenses, Emiliano Pernetta e seu colega Dario Vellozo, simbolista notável da época, tinha entre suas principais intenções promover, mediante uso da arte e da poesia, um ambiente de sociabilidade para a elite letrada, enquanto exaltava a influência da cultura helênica.

Homenagem a deusa Clóris, personificação da primavera grega, a cerimônia contava com a participação de homens, vestidos em túnicas brancas, com ramos de oliveira nas mãos e coroas de louros em suas cabeças, enquanto liam e interpretavam poemas, rememoração viva do teatro grego.

A participação feminina também era numerosa, consentida por seus pais-inventores, se deu principalmente no Templo das Musas, o sentimento da instituição de uma “Nova-Helade” inundava o espetáculo, no local que hoje conhecemos como sede do Instituto Neo Pitagórico. Particularidades que podem ser observadas nas imagens a seguir:

(Foto: acervo Museu da Imagem e do Som)
 (Acervo: Instituto Neo-Pitagórico)

Popularmente conhecida como “Rua das Flores”, a XV de Novembro, tornou-se ponto imprescindível dentro do roteiro de visita a cidade de Curitiba e um dos principais cenários para a celebração da Festa da Primavera, na virada do século.

Construída em petit pavé, alterna entre pedras brancas e pretas, desenhos de araucárias surgem e a vegetação escolhida como o símbolo do estado ganha plena forma. Fotografias registraram os desfiles anuais em que carruagens, cobertas por arcos de flores, atravessavam a região central do município, acompanhadas por uma multidão. Das sacadas dos casarões era possível observar o cotidiano urbano em suspensão. A solenidade interrompia o repetir das atividades rotineiras e as duas temporalidades partilhavam o existir, momentos responsáveis pela produção de um material de valor iconográfico inestimável, o coração do comércio vigente conquista o preservar de seu passado.

(Acervo: Casa da Memória – FCC online/pergamum)
(Fonte: Jornal Folha)

Desse modo, a representação das civilizações antigas como fonte de estudos, desencadeou uma via de comunicação entre o passado, daquele que já viveu, com o presente de quem observa. Os canais converteram-se em instrumentos colaborativos na compreensão do homem, dentro de uma República recém-instaurada, suporte necessário para entender como esse processo reverberou no comportamento da sociedade curitibana, entre 1890 e 1930.

Assim, a compreensão do corpo social como um coletivo, a criação de uma identidade, legitimada pela identificação daquilo que entendemos como origem, portanto íntegra, frente à face da democracia grega e da liberdade por ela edificada, transpassavam o universo da festividade em curso trivial. A colisão entre teoria e objeto, oferecem novas visões acerca dos estudos clássicos.

Referências
CHEVITARESE, A.L.; CORNELLI, G.; SILVA, M.A.O. A Tradição Clássica e o Brasil. Brasília, Fortium, 2008.
CLAVAL, P. A festa religiosa. Ateliê Geográfico, Goiânia, v. 8, n. 1, p. 6- 29. 2014.
MURICY, Andrade. O símbolo: à sombra das araucárias (Memórias). Conselho Federal de Cultura e Departamento de Assuntos Culturais, 1976.

  • Letícia Bail

Li Hongbo e a arte de se repensar esculturas

Imagens: Busto de Laocoonte e busto de David, feitos pelo artista Li Hongbo. Fontes: Eli Klein Gallery e Yellowtrace.

O padrão de esculturas clássicas é muito presente no imaginário ocidental: formas humanas realistas, de mármore sólido, estão frequentemente em museus, residências e outros espaços, representando elite e riqueza. Esculturas de inspiração grega foram muito produzidas no período do Renascimento italiano, pois, por serem representações realistas e idealizadas de figuras humanas, estavam em extrema consonância com os ideais humanistas do período.

As imagens trazidas acima são réplicas de duas esculturas famosas no estilo clássico. A primeira, propriamente clássica, é uma réplica da escultura Grupo de Laocoonte, encontrada numa escavação de Roma em 1506. A segunda é uma réplica da escultura David, feita pelo escultor Renascentista Michelangelo entre 1501 e 1504.

Ao olhar as imagens colocadas acima, não deve ter passado pela sua cabeça que seriam nada além de réplicas das esculturas originais. No entanto, essas duas esculturas são mais do que o olhar inicial parece mostrar: elas são feitas com milhares de camadas de papel sobrepostas e são completamente maleáveis

Imagens: Demonstração da maleabilidade das esculturas. Fonte: Collater.al.

Li Hongbo é o artista chinês por trás dessas obras de arte, que brincam com as nossas expectativas do que uma escultura deve ser e como ela deve se comportar. O artista se fascinou pela flexibilidade natural do papel como material de base ao analisar brinquedos e lanternas tradicionais chineses. Sua paixão o levou a criar esses trabalhos extremamente complexos, sendo que para esculpir uma única cabeça podem ser necessárias mais de 5.000 camadas de papel coladas manualmente.

Imagem: Li Hongbo demonstrando a movimentação de sua escultura. Fonte: Widewalls.

Em entrevista à Reuters, o artista afirma que o seu interesse em chocar a audiência é motivado pela vontade de chamar a atenção para o papel: “As pessoas têm uma ideia fixa do que uma figura humana é… então quando você transforma a figura humana, as pessoas vão reconsiderar a natureza dos objetos e as motivações por trás da criação. É com isso que eu me importo.”

Historicamente, esse tipo de escultura é feito com o objetivo de chamar a atenção para a sua representação – um modelo ideal de figura humana. A abordagem de Li Hongbo, que desloca nosso olhar para o material com o qual ela é feita, mostra uma grande inovação que vai muito além de réplicas de esculturas clássicas. Você pode ver um pouco mais do seu trabalho e inspiração aqui. Além disso, você pode assistir a um vídeo da Schoeni Art Gallery, no qual ele explica o passo-a-passo do seu processo de criação aqui.

  • Letícia Schevisbisky de Souza

Velázquez: “Las Hilanderas” e a mitologia

Las Hilanderas, de Velázquez. Fonte: Wikimedia Commons.

O quadro “Las Hilanderas” foi pintado pelo artista espanhol Diego Velázquez em cerca de 1657. Atualmente, compõe o acervo do Museu Nacional do Prado em Madrid e já possuiu diversas interpretações ao longo dos anos. Segundo o historiador José Manuel Pita Andrade (1992), apesar do quadro ter sido classificado no inventário Don Pedro de Arce como uma pintura sobre o mito de Aracne em 1664, essa interpretação mitológica foi esquecida nos séculos posteriores. Esse autor realiza uma retomada da trajetória interpretativa do quadro, que será resumida a seguir.

Durante os séculos XVIII e XIX, o quadro foi interpretado como um retrato realista de uma fábrica de tapetes, tendo sido inaugurado no Museu do Prado em 1819 como um momento da vida cotidiana. Foi nas quatro primeiras décadas do século XX que os historiadores da arte passaram a retomar interpretações místicas do quadro. Em 1903, Ricketts identificou que a imagem formada na tapeçaria ao fundo do quadro é a representação feita por Ticiano do rapto de Europa. A partir disso, em 1940, Enriqueta Harris sugeriu a presença de Atena e Aracne na pintura de Velázquez – já que, no mito, Aracne escolhe retratar em sua tapeçaria as aventuras amorosas de Zeus. Essa interpretação foi reafirmada por pesquisas de diversos outros historiadores da arte, como Diego Ângulo Íñiguez, e até hoje no Museu do Prado se apresenta o quadro como uma representação do mito de Aracne – apesar de ainda haver interpretações diversas sobre quais das figuras representam as duas mulheres do mito.

No mito, registrado por Ovídio, Aracne é uma humana extremamente talentosa na arte de bordar e tecer. Suas tapeçarias são tão impressionantes que seu talento passa a ser comparado com o da deusa Atena. A mortal, extremamente orgulhosa, decide desafiar a deusa para estabelecer definitivamente quem era melhor tecelã. Na competição, Atena representa em sua tapeçaria os deuses do Olimpo todo poderosos e o destino trágico dos humanos que ousaram desafiá-los. Aracne, por sua vez, escolheu representar as aventuras amorosas de Zeus, entre elas o rapto de Europa. Ofendida pela temática e pela qualidade do trabalho, Atena transforma Aracne na primeira aranha, condenando-a a tecer eternamente com fios sem cor.

Javier Portús Perez, historiador e chefe do Departamento de Pintura Espanhola do Museu Nacional do Prado, comenta essa obra de Velázquez em dois vídeos no canal que o museu possui no youtube. A obra é apresentada como um posicionamento de Velázquez em defesa da classificação da pintura como atividade intelectual. No período em que a obra foi produzida, discutia-se acerca da tradição artística e, ao representar o mito de Aracne, Velázquez traz um argumento importante a favor da arte. Segundo Javier Perez, os mitógrafos do século XVII viam nesse mito uma mortal que consegue competir e até mesmo superar uma deusa por meio da arte. Os humanos, portanto, possuem na arte uma capacidade infinita de progresso, sendo esse o único meio no qual podem se igualar aos deuses.

É interessante notar, portanto, como a memória em relação aos mitos clássicos vai sendo ressignificada durante a história. Enquanto, em sua origem, o mito de Aracne talvez fosse lido como uma lição sobre os perigos do orgulho e de desafiar os deuses; no humanismo espanhol do século XVII, ele pôde ser lido como um atestado da capacidade artística humana. O verdadeiro interesse de Velázquez ao pintar o quadro é inatingível para nós hoje, mas o estudo de como ele foi recebido e interpretado através dos séculos e os motivos pelos quais determinadas interpretações ganham força em diferentes momentos trazem grandes contribuições para a historiografia.

Referências:
ANDRADE, José Manuel Pita. “Realismo, Mitos y Símbolos em ‘Las Hilanderas’”. In: Cuadernos de Arte de la Universdad de Granada, n. 23, 1992, pp. 245-259.
OBRA comentada: Las hilanderas o la fábula de Aracne, Diego Velázquez. Museo Nacional del Prado, 2016. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=9kAAdkbh6Nw&gt; . Acesso em: 20. out. 2019.
OTROS ojos para ver el Prado: Las Hilanderas, de Velázquez. Museo Nacional del Prado, 2012. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=cJsBWaQIpWc&gt;. Acesso em: 20. out. 2019.

  • Letícia Schevisbisky de Souza

Cenas de competições na antiguidade

Na antiga Atenas ocorriam diferentes festas religiosas e cívicas, uma delas era o Festival das Panateneias em homenagem a deusa políade. Era uma celebração que abrangia jogos competitivos, procissão, sacrifícios e banquete. Nos jogos ocorriam diversas provas como as corridas de curta e longa distância, as lutas, os lançamentos de disco e de dardo e as corridas de bigas. Em muitas dessas competições o prêmio dos vencedores era o azeite sagrado das oliveiras de Atena, entregue em ânforas de cerâmica com as cenas dos jogos de um lado e da deusa Atena Promachos do outro.

Neste post um dos objetivos é notar que nas figurações atléticas, a distinção entre algumas provas é feita pelo gesto. Por exemplo: a distinção entre corridas de curta (figura 1) e longa distância (figura 2) é feita pela posição dos braços e das mãos e a distinção entre o pancrácio (figura 3) e o boxe (figura 4) passa pelo tipo de envolvimento entre os lutadores. Sendo o pancrácio uma luta de maior contato físico, diferente do boxe.

Figura 1: Ânfora Panatenaica, cerca de 500 a.C.

Fonte: Museu do Louvre, foto de Camilla Martins.

Figura 2: Ânfora Panatenaica, 333-332 a.C. (arconte Nikrokrates).

Fonte: Museu Britânico, coleção online.

Figura 3: Ânfora Panatenaica, 365-360 a.C.

Fonte: Museu Britânico, coleção online.

Figura 4: Ânfora Panatenaica, 336 a.C. ou mais antigo.

Fonte: Museu Britânico, coleção online.

Shear, ao comentar a ocorrência de tais provas nas ânforas panatenaicas, afirma que a chave para identificar o evento é a representação dos braços e das mãos dos corredores. Os braços daqueles de curta distância ficavam afastados do corpo, enquanto as mãos estavam muitas vezes na altura da cabeça e sempre estendidas. E os de longa distância mantinham seus braços baixos e próximos de seu corpo, com as suas mãos fechadas em punhos (SHEAR, 2012, p. 81).

De maneira geral, o elemento marcante em todas essas imagens é o corpo masculino nu. Ele expressa os valores de homens livres, apontando a força, a agilidade, o vigor, o potencial guerreiro desses corpos e, também, o potencial de vitória. São todas qualidades que enaltecem a honra e mostram que podem aproximar os atletas do divino, pois durante a competição são heróis, são como deuses, sendo às vezes guiados por divindades (MARTINS, 2014, p. 68) – como é o caso de imagens nas quais a deusa Vitória aparece junto dos esportistas, podendo ser o juiz em pessoa ou a protetora de algum deles (figura 4).

Pode-se pensar que esses valores marcados no corpo do atleta expressam, ainda, a vontade de serem lembrados. Afinal, na cultura grega um homem somente teria fama, no sentido de honra, caso de alguma maneira ficasse na memória das demais pessoas, o que é uma espécie de ser imortal e eterno. Enfatiza-se: na memória dos outros, por isso, a cultura física dos helenos visaria uma relação com o mundo, com as demais pessoas (MARTINS, 2014, p. 68).

Por fim, o outro objetivo deste post é perceber que nas cenas de lutas e lançamento de dardo os homens possuem músculos mais fortes e peso um pouco mais avantajado, enquanto nas provas de corrida eles possuem músculos definidos, mas são mais esbeltos e magros. Isso faz pensar na provável diferença alimentar entre eles e, também, na diferença entre os treinos. Apesar de ambos estarem inseridos em uma cultura física que valorizava o belo e o jovem, possuíam maneiras diversas de se relacionar com essa cultura, cuidados de si distintos, que mostram uma ação, pois toda a alimentação e atividade física são no sentido de individualizar o atleta agindo livremente no mundo. Segundo Duarte (2010, p. 106)

os exercícios ascéticos da Antiguidade nada mais eram do que diversas formas de ação do indivíduo sobre si mesmo, por meio das quais ele visava governar-se ao regrar e determinar sua dieta, suas relações sexuais, suas amizades e seu próprio corpo. Encontram-se aí o que Foucault denominou as ‘práticas de si’ ou ‘o cuidado de si’, comportamentos que não constituíam um sistema de prescrições ou proibições morais universais, mas apenas um conjunto de regras impostas a si mesmo, as quais determinavam certo estilo de vida.

De forma geral, Foucault mostra a possibilidade do passado como o lugar de uma experiência distinta da do presente e também autônoma, construída por práticas de liberdade. Além disso, rompe com a ideia de tradição e de progresso positivo, linear. Uma interpretação para essa cultura física, nesse sentido, são as práticas de si, as quais Rago (2009) explica serem formadas com a construção de si a partir de códigos de ética e de práticas de liberdade.

Conceitos que permitem pensar sobre as maneiras de se educar o corpo, isso em um mundo onde a estética corporal e a própria vida estão no discurso do capital e na mídia; apontando para um mundo de beleza, de perfeição e de harmonia. Nessa reflexão, o momento atual é “muito diferente da experiência do cuidado de si do paganismo, que em suas diferentes modalidades, não consiste em uma atividade solitária, não se destina a separar o indivíduo da sociedade, mas supõe as relações sociais, pois ocorre nos marcos da vida social e comunitária.” (RAGO, 2009, p. 262).

Assim, defende-se que o atleta no espaço público dos jogos mediante sua dietética, sua cultura física e seu corpo nu, estiliza, individualiza, sua ação segundo critérios que lhe permitem manter seus valores de honra e de glória vivos na memória dos demais.

Bibliografia
BRITISH MUSEUM. Collection Online. Disponível em: <http://www.britishmuseum.org/research/collection_online/search.aspx&gt; Acesso em: 08/08/2018.
DUARTE, André. Vidas em Risco: crítica do presente em Heidegger, Arendt e Foucault. São Paulo: Forense Universitária, 2010.
MARTINS, Camilla. A Iconografia dos Vasos Panatenaicos de Atenas entre 566 A.C. e 320 A.C. 136p. Dissertação (Pós-graduação em História). Universidade Federal do Paraná.
SHEAR, Julia. The tyrannicides, their cult and the Panathenaia: a note. The Journal of Hellenic Studies, vol. 132, p. 107-119, 2012. RAGO, Margareth. Dizer sim à existência. In: RAGO, Margareth; LARROSA, Jorge (Org.). Para uma vida não-fascista. Belo Horizonte: Autêntica, 2009, p.253-265

  • Camilla Miranda Martins

Referência aos clássicos na cultura pop: o caso Alt-J

Fonte: Youtube

Em 09 de julho de 2012, a banda indie britânica Alt-J lançou o videoclipe para seu single “Tessellate”. Dirigido por Alex Southam, o clipe se propõe a realizar uma subversão no afresco “Escola de Atenas” do pintor renascentista italiano Rafael, representando-a como um paraíso do gangster moderno.

Fonte: Wikipedia Commons.

A referência ao afresco de Rafael é ainda mais explicitada na sua presença em uma camiseta usada por um dos atores e nas poses adotadas pelas figuras centrais: o homem apontado para o céu como Platão e a mulher com sua mão paralela ao chão como Aristóteles.

Fonte: Youtube.
Fonte: Youtube.

Uma das principais características do Renascimento italiano é a retomada dos clássicos, sendo os tratados e pensamentos dos filósofos greco-romanos muito valorizados. Há uma grande retomada no estudo das artes e das experimentações clássicas, além de uma grande dedicação ao estudo de conteúdos como gramática, retórica, história, poesia, filosofia, latim e grego. O afresco original, pintado entre 1509 e 1511 por Rafael no Vaticano, é típico desse movimento e busca fazer uma representação da filosofia. A obra está longe de ser considerada um retrato fiel, pois, além do grande intervalo de tempo entre sua produção e o tema que representa, os filósofos retratados são de períodos distintos e muitos não eram nem mesmo atenienses.

Segundo o classicista Glenn W. Most, a maneira como a filosofia e as artes liberais são representadas na “Escola de Atenas” é uma ruptura com a tradição do começo do século XVI. Isso se dá porque, ao invés de fazer representações alegóricas femininas, Rafael decide pintar 58 figuras masculinas. Essas figuras se distribuem em um espaço arquitetônico de luxo sóbrio e realizam ações esperadas de filósofos: leitura, discussão, ensino, reflexão e contemplação. É justamente esse aspecto que é subvertido em maior extensão no clipe, pois as ações realizadas são normalmente consideradas extremos daquelas presentes no afresco: dança, flerte, brigas, consumo de bebidas alcóolicas e cigarro, entre outros.

Existem poucos pronunciamentos oficiais da banda sobre o significado do clipe, além de que seu objetivo tenha sido causar um choque no espectador. Esse objetivo foi certamente atingido e é observado nas diversas teorias elaboradas pelos fãs da banda para interpretar o vídeo. A sugestão do paralelo entre filósofos gregos e gangsters modernos pode ser vista como uma crítica aos valores tradicionais de erudição, mas também pode ser considerada uma denúncia das desigualdades sociais ao contrastar a arquitetura do afresco com personagens de classes econômicas mais baixas do século XXI. Independentemente da interpretação, a opção de produzir algo polêmico pela subversão de representações de clássicos nos leva a pensar sobre o papel que elas ocupam no imaginário popular, mesmo tendo sido construídas muito posteriormente – como é o caso do afresco de Rafael, produzido no século XVI.

  • Letícia Schevisbisky de Souza

Referências:

MOST, Glenn W. “Reading Raphael: ‘The School of Athens’ and Its Pre-Text. In: Critical Inquiry, vol. 23, no. 1. University of Chicago Press, 1996, pp. 145-182.

Clipe da música

Homossexualidade na Grécia antiga?

Nos deparamos, por vezes, com frases como “antigamente que era bom, quando gay não tinha orgulho de sair por ai”, ou “gay sempre teve, mas tinha vergonha de sair do armário”. Frases ditas por pessoas com pensamentos mais conservadores, que desejam voltar a um passado idealizado, e que consideram a homoafetividade como ahistórica, sempre existindo, mas com o diferencial de que ela ficaria reprimida porque os gays teriam então uma suposta vergonha.

Interessante, porém, seria tentarmos encontrar a genealogia da ideia da homoafetividade e nos perguntarmos se – de fato – as pessoas sempre pensaram suas sexualidades a partir dessa forma. Ao olharmos para a antiguidade grega, nos deparamos com outra forma de vermos as constituições do sujeito. Não era a escolha do sexo da pessoa com quem você dormia que te definia como pessoa. Os homens nesse período tinham prazeres tanto com mulheres como com homens. Era o descontrole com as relações que fazia com que um homem fosse visto como afeminado, e não o fato de que ele dormia com homens ou não. Assim, um homem que não tivesse controle sobre si mesmo, e se entregasse aos prazeres de forma excessiva seja com mulheres ou homens, era visto de forma negativa. O foco então era no controle dos excessos, no equilíbrio e na sua autonomia com o cuidado de si.

A ideia de homossexualidade – tal qual conhecemos em nossa atualidade – não existia na antiguidade clássica grega. Quando, então, ela começa a se constituir? Foi somente em 1892 quando acredita-se que um autor – Chaddock – incluiu no dicionário de Oxford a palavra homossexualidade. Com a construção desse conceito, veio também a criação científica da sexualidade. Apesar de que antes os atos sexuais eram categorizados e analisados, foi somente no século XIX que fez-se uma correlação direta entre a identidade da pessoa e sua orientação sexual.  A ciência possuiu, nesse debate, papel central para não só fazer do sexo uma uma categoria de análise, mas também o centro das identidades.

Ao olharmos para o passado clássico grego, e para a construção do século XIX que permanece até hoje, percebemos que nossa maneira de lidar com a sexualidade foi criada em um momento histórico, e que ela já foi diferente. Ao vermos essa categoria como histórica e construída, podemos questionar nossa atualidade, e apresentar a possibilidade de transformação para outras formas de ver a sexualidade, de ver os indivíduos.

  • Mariana Fujikawa

Boudica e o Brexit: o clássico como apelo retórico

“Está na hora de Theresa May encontrar sua Boudica interior”. A frase, publicada em outubro de 2018 pelo jornal britânico The Sun, veio acompanhada da imagem do post, isto é, a estátua icônica de Boudica modificada com o rosto de Theresa May.

Não é de hoje que os britânicos resgatam a figura de Boudica. A situação de mulheres no poder, recorrente no país, motivou a referência antiga em diferentes contextos, sendo a rainha Vitória e as sufragistas dois grandes exemplos. O lugar de Boudica na memória nacional britânica é bastante importante: um símbolo de força feminina e resistência ao poder romano, bem como de luta contra abusos e injustiças. Todas essas associações acompanham o uso de sua figura, em maior ou menor grau, por Nick Timothy, autor da matéria em questão.

No entanto, The Sun não foi o único a publicar essa associação. Nigel Nelson, editor político da Mirror, também escreveu sobre as ligações de Boudica e May. Ele trouxera, em 2016, mais referências históricas da revolta, apelando para que a ex primeira-ministra usasse de elementos surpresa assim como o fez Boudica ao destruir três cidades importantes da Bretanha.

Acompanhada de momentos de ruptura na história britânica, Boudica foi usada em contextos de mudança política, nesse caso como propulsora da defesa contra o que seria o domínio da União Europeia sobre o Reino Unido – como, em 60 d.C, o domínio do Império Romano sobre os Icenos.

Longe do conturbado Brexit, Boudica foi uma líder guerreira do século primeiro, na ilha onde hoje é a Inglaterra. Conhecemos muito pouco sobre sua figura através dos textos de Tácito (Agrícola e Anais) e Cássio Dio (História de Roma), que dedicam breves parágrafos ao que acreditavam ser essa mulher. Nenhum dos dois esteve na Bretanha, e é importante mencionar quão estranho soava aos ouvidos romanos a liderança feminina. Mesmo assim, suas narrativas e descrições são a fonte da ampla tradição sobre essa heroína nacional que se tornou Boudica.

Dos pequenos fragmentos e vestígios arqueológicos da revolta, sabemos que o Império Romano ocupava a ilha pouco antes de sua eclosão, e que Boudica estava ao lado do rei Prasutagus na liderança de uma importante tribo da região, os Icenos. O motivo da revolta, segundo Tácito, foi a quebra do pacto que os romanos estabeleceram com Prasutagus, que era um rei cliente de Roma. Em outras palavras, estava associado ao Império mas continuava nominalmente livre. Após a morte do rei, Tácito conta sobre o abuso da violência e autoridade pelas tropas romanas, que desrespeitaram o pacto e invadiram o território dos Iceni, violentando Boudica e suas filhas. Em sua narrativa, então, ela lidera tropas na destruição de Camulodonum, Londinium e Verulamium, e profere um importante discurso sobre “vingar a liberdade perdida”.

É nesses termos que Nelson e Timothy escreveram sobre Theresa May. Transportando a vingança da liberdade perdida ao Reino Unido do século XXI, trouxeram ainda referências imagéticas da relação, via charge e montagem em questão. A estátua de Boudica modificada mexe com um importante símbolo localizado em frente à House of Commons, baixo parlamento inglês. Trata-se, portanto, de um apelo a fortes símbolos nacionais para colocar em Theresa May a responsabilidade de agir conforme a figura histórica: “é seu momento de Boudica, Theresa”.

  • Cassiana S. Maciel

Para saber mais:

This is your Brexit Boudicca moment, Theresa (matéria em inglês no site do The Sun) – https://www.thesun.co.uk/news/7501794/this-is-your-brexit-boudicca-moment-theresa-its-time-to-say-on-your-way-barnier-like-up-yours-delors/

Theresa May leading the all woman charge for Britain’s top politics jobs (matéria em inglês no site Daily Mirror) https://www.mirror.co.uk/news/uk-news/theresa-leading-woman-charge-britains-8336505

Boudica em Mulheres Escondidas pela História, artigo de Taís Bagoto Belo- https://www.academia.edu/15262180/Boudica_em_Mulheres_escondidas_pela_Hist%C3%B3ria

Boudica e as facetas femininas ao longo do tempo: nacionalismo, feminismo, memória e poder, tese de doutorado de Taís Bagoto Belo – http://repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/281233?mode=full

Bento Cego, o Homero Paranaense

Revista Illustração Paranaense. Edição nº3, 1929.

No Paraná do início do século XX a elite curitibana buscou símbolos e tradições grandiosas, visto que o estado conseguiu sua independência de São Paulo só em 1853 e assim não fazia frente a outras importantes regiões do país. Afinal, não tinha uma forte economia e não possuía uma identidade própria do “Ser Paranaense”. Essa necessidade em criar uma identidade ficou conhecida como Paranismo ou Movimento Paranista.

Nesse movimento, além da elite, participaram diversos artistas, os quais criaram obras de acordo com suas ideias do que demonstraria as características imponentes da região. Entre elas observamos principalmente a estilização do pinhão, do Pinheiro do Paraná e da erva-mate, mas também combinações desses com símbolos estrangeiros, como por exemplo, com os antigos gregos e romanos. Esse é o caso da personagem citada no título do presente texto, o Bento Cego, ou Homero Paranaense/Antoninense.

Conhecemos a personagem Bento Cego a partir da revista Illustração Paranaense[1], periódico publicado no estado entre 1927 e 1930. Nela descobrimos que Bento nasceu na cidade de Antonina-PR e é chamado de Homero, pois também seria cego; era um contador de histórias assim como o grego; e saia pela cidade a cantar, só que em vez de lira, ele tocava viola[2]. Observamos ainda no livro Bento Cego[3], escrito em 1902 por Nestor de Castro, a comparação física entre Bento com o que os paranistas imaginavam que seria o Homero Grego: ambos teriam a compostura varonil e cabelos longos e pretos caindo aos ombros.

Tal ligação com os clássicos não é a única encontrada no Paranismo. E na medida em que os paranistas consideravam os antigos grandiosos, comparar um símbolo importante do folclore paranaense – chamado na Illustração Paranaense de “o maior bardo sertanejo do Paraná” – com outro da Grécia Antiga contribuía para fortalecer essa identidade em construção. Elevando, assim, o Paraná ao mesmo “nível” da cultura da Grécia Antiga.

  • Barbara Fonseca

Referências:

[1] Revista Illustração Paranaense. Edição nº5 – 6, 1929. 

[2] TURIN, Elisabete. A arte de João Turin. Campo Largo: Ingra, 1998.

[3] CASTRO, Nestor. Bento Cego. Arquivo Municipal de Antonina.

PEREIRA, Luis Fernando Lopes. Paranismo: o Paraná inventado: Cultura e imaginário no Parana da I Republica. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 1998.

História e Jogo, Jogo e História

Age of Empires: The Rise of Rome. Fonte: VGMPF Wiki.

Resolvi começar meu primeiro post aqui no História Antiga e Conexões Com o Presente tratando sobre meu primeiro contato mais intenso com a Antiguidade, ainda no alvorecer dos anos 2000: Age of Empires: The Rise of Rome. O jogo principal foi lançado em 1997 e sua expansão, abreviada como RoR, em 1998. Desde então, a série Age of Empires formou uma sólida fanbase, lançando mais 2 títulos principais, suas expansões, e com mais um terceiro em desenvolvimento, sem contar o spin-off Age of Mythology, baseado nas mitologias grega, egípcia, nórdica e, posteriormente, chinesa.

O primeiro título da série contou com doze civilizações da Antiguidade, as quais se somaram mais quatro com a RoR. O jogo conta com um manual que tem breves explicações históricas sobre unidades, tecnologias e civilizações, assim como o próprio modo campanha, que, além das notas, permite ao jogador reviver certos acontecimentos históricos. As campanhas abordam o Egito, o Império Babilônico, a Grécia, o Período Yamato, o Império Hitita e Roma. Por se tratar de um jogo de RTS (Estratégia em Tempo Real, em inglês), ele tem suas limitações quanto ao modo que apresenta os episódios, mas não perde seu mérito em alimentar o desejo em se aprender mais sobre Antiguidade.

O jogo conta com quatro estilos arquitetônicos diferentes, nos quais as 16 civilizações totais são distribuídas: estilo grego, egípcio, babilônico e do leste asiático. As unidades se dividem em civis (de construção e coleta, de transporte e de troca) e militares (guerreiros terrestres, armas de cerco e navios de guerra). A única modalidade de jogo presente é a de conquista militar dos adversários, tanto single player quanto multiplayer, além das campanhas mencionadas acima, cada qual com seu objetivo principal específico.

O sucesso de Age of Empires se estende até hoje, ocasionando na remasterização do jogo (chamada de Age of Empires: Definitive Edition), comunidade ativa, campeonatos e eventos mundo afora. Essa persistência tão longa, ainda mais em um mercado que nunca para de se atualizar e de lançar toneladas de jogos novos por ano, aponta que sua fórmula não se sustenta apenas na sua mecânica, mas na relação com a História e o quanto esse tema envolve as pessoas. É visível na comunidade como a fome por conhecimento surge daquilo que era só uma diversão. Sempre há alguém apontando alguma imprecisão histórica no jogo, sugerindo novas civilizações – para possíveis futuras expansões – e seus pontos fortes e fracos de acordo os registros que temos sobre elas (seriam baseadas em unidades de ataque à distância? Navios? Economia? Cavalaria?), trazendo curiosidades sobre Antiguidade, tirando dúvidas etc.

Em tempos tão sombrios, em que a História e as Humanidades se vêm tão atacadas e questionadas do porquê de suas existências, a esperança para a reversão desse quadro pode aparecer em áreas que nunca foram levadas muito a sério, como a dos jogos eletrônicos. Seja por despertar o desejo de estudar profissionalmente sobre o passado, como hobby ou mesmo que seja para que as pessoas percebam a importância do passado na construção de formas de lazer, o campo da jogatina tem muito a contribuir para nós historiadores, basta entrarmos no jogo.

  • André S. N. Pinto

A curiosa história do parto cesariana

Nascimento de César. Iluminura medieval da British Library.

Pessoas extraordinárias mereciam narrativas biográficas extraordinárias. Ao menos é assim que se costumava pensar na Antiguidade. Alexandre, por exemplo, ganha romances que, do final da idade antiga e por todo o medievo, tornam-se extremamente relidos e conhecidos, apesar de suas narrativas um pouco esdrúxulas. Conta-se também que Virgílio, grande poeta que narra frequentemente o mundo rural, teria nascido em meio a um bosque e próximo da natureza, de forma quase mágica. As narrativas não diferem quanto a César, considerado o primeiro imperador romano e cujo nome se declina com o próprio cargo: daí todos os imperadores se chamarem César em Roma, originando depois Kaiser em alemão e até czar na Rússia.

Contava-se, na Antiguidade, que um homem da família de César teria nascido de um parto diferente que era praticado apenas quando havia morte materna: a incisão do ventre. Pela dificuldade do procedimento, a sobrevivência da criança era considerada extraordinária e o neonato visto como alguém de próspero futuro. Esse familiar cesário, entretanto, não se referia ao imperador que conhecemos bem, mas ao primeiro homem de sua família que, durante as guerras contra Cartago, teria ajudado a proteger Roma.

Na verdade, os antigos sabiam bem que Júlio César não tinha nascido de um ventre talhado, exsecto ventre, como se dizia em latim. Isso porque sua mãe, Aurélia, teria tido vida longa e morrido apenas de morte natural. Entretanto, a etimologia mais comum para o nome de família do imperador, derivava a palavra caesar do verbo caedo, que significa cortar, em lembrança daquele guerreiro importante que foi mencionado acima.

Entretanto, ainda que os Antigos conhecessem a diferença entre um e outro personagem, o guerreiro e o imperador, as tentativas de lembrar o nascimento venturoso do imperador levaram a uma confusão. Durante a Idade Média, historiadores e pintores misturaram, por algumas vezes, os dois personagens e consolidaram versões de que César teria nascido de um parto cirúrgico. O bizantino João Malalas é normalmente citado como o responsável por essa confusão. Mas quando, no século XVI, o médico francês François Rousset descobre uma forma de realizar o parto por incisão e sem prejudicar a vida nem da criança nem da mulher, ele resolve nomear sua técnica de enfantemant césarienne ou o que conhecemos hoje como cesariana, em homenagem a conhecido imperador romano e à confusão medieval.

Para saber mais:

Histoire de la Césarienne em https://www.cesarine.org/avant/histoire/

Quando nasce il mito del parto cesareo em https://ricerca.repubblica.it/repubblica/archivio/repubblica/2012/01/13/quando-nasce-il-mito-del-parto-cesareo.html

“Non natto da donna” la nascita di Cesare e il “parto cesareo” nella cultura antica”, artigo de Maurizio Bettini publicado no jornal quaderni di studi romantistici, n 40, 2012, pp. 211-237.