O RARO DO RELES: UM LATIM DE BANDIDO

Paulo Leminski - poemas - Revista Prosa Verso e Arte
Paulo Leminski. Imagem: Revista Verso, Prosa e arte. Reprodução Livre.

O post de hoje é uma dica de leitura do capitulo de autoria de Guilherme Gontijo Flores, professor do departamento de Letras Clássicas da UFPR, parte do livro: A Pau a Pedra a Fogo a Pique: Dez estudos sobre a obra de Paulo Leminski, organizada por Marcelo Sandman. Na primeira parte do texto é apresentado a relação de Leminski com o latim, e como se deu a utilização da língua em sua obra, o autor aponta que o poeta tinha pavor da poesia provinciana, e da pedância erudita ao utilizar outros idiomas, principalmente o latim, e diferindo disso Leminski traz uma contra pedância. Ele não abandona a bagagem erudita, mas a tira da torre de marfim, colocando-a em contato com o mundo, expandindo as possibilidades de diálogo, afastando então, o idioma da cultura erudita e o aproximando da contracultura. Flores enfatiza a utilização de um jogo etimológico, onde o poeta não traz a etimologia por si só, mas também através da aproximação de palavras com sonoridades parecidas, busca recuperar uma origem em comum de termos semelhantes, ou estabelecer sentidos fictícios que favoreçam o intento da poesia, possibilitando diversas camadas de leitura, e ampliando então o sentido do poema.

O tópico seguinte se trata a respeito das traduções realizadas por Leminski, de início é exposto a visão do poeta sobre o oficio de traduzir, ao analisar um trecho do poema “Ler Pelo Não”, o autor enfatiza que para o poeta o erro passa a ser uma possibilidade para a criação de algo novo, e enfoca na relação deste com o trabalho de Haroldo de Campos, para o qual a tradução não deveria somente transmitir a mensagem, mas também trazer algo próprio, a tradução seria uma criação, um diálogo entre autor e tradutor. Flores discorre, por conseguinte, sobre a tradução do Satyricon feita por Leminski, apontando que este ao traduzir a obra, buscava lhe dar uma nova vida, mostrando os complexos componentes humanos que fazem parte da cidade; ao comentar a tradução de Leminski, Flores aponta que este deixa passar algumas coisas, e que o principal seria as alterações modernas que livro sofreu. Ele caracteriza a tradução de Leminski como um Satyricon apropriado pela poética marginal, feito neste caso com bastante rigor, destacando que o poeta utiliza da mistura de termos eruditos e da linguagem popular para compor as suas traduções, e por fim salienta que a tradução de Leminski abre espaço para novas possibilidades de leitura para a obra.

No tópico final é exposto e comentado mais alguns dos trabalhos tradutórios de Leminski, como a sua releitura das Metamorfoses de Ovídio, onde o poeta entrelaça e modifica os mitos originais de maneira livre, e traz em seu texto algumas traduções excelentes de trechos do original. É evidenciado também uma tradução dispersa de Horácio, que traz o estilo tradutório utilizado no Satyricon, no qual o poeta traz uma poética contemporânea com traços do movimento concretista na maneira de organizar a composição, revitalizando então a obra de Horácio de uma maneira menos “Clássica” e sim mais coloquial, que incorpora elementos da poética de sua geração. Concluindo o texto o autor assinala que o poeta embora mantenha a solidez do trabalho filológico, este consegue fazer isso de maneira a qual o texto possa ser acessível ao leitor, e que possa adentrar na poética contracultural e tropical.

Referências
SANDAMANN, Marcelo (org.). A pau a pedra a fogo a pique: Dez estudos sobre a obra
de Paulo Leminski. Curitiba, Secretaria de estado da Cultura, 2010. p. 103 – 139.

  • Renata Cristina de Oliveira

Fora do Lugar, Edward Said

Capa do livro Fora do Lugar. Companhia das Letras. Imagem: reprodução.

O livro Fora do Lugar foi escrito por Edward Said pouco antes de seu falecimento em 2003 aos 68 anos de idade, a publicação original é de 1999 e começou a ser escrita pelo intelectual em maio de 1994, enquanto se restabelecia das sessões iniciais de quimioterapia para o tratamento de leucemia. Said, nascido em Jerusalém, foi crítico literário e cultural nos EUA, escreveu vários artigos acerca da questão palestina e livros como Orientalismo e Cultura e Imperialismo. Em Fora do Lugar, o autor tornou a escrita uma ferramenta de prazer em meio ao sofrimento do tratamento de câncer.

O livro trata da vida de Said até 1962, quando terminou o doutorado, sempre nos mostrando um pouco de presente, de como caminhava seu tratamento e de algumas ações recentes relacionadas a isso. A descrição, essencialmente, aborda os lugares onde viveu (Jerusalém, de 1935 até 1947; Cairo, de 1947 até 1951; uma cidadezinha no Líbano, entre 1946 e 1969, durante os verões; e Nova York, a partir de 1951, indo passar os verões no Cairo, isso até ser banido por 15 anos do país por causa de ações ilegais do comércio de seu pai durante os anos Nasser), as escolas e os amigos de cada uma dessas localidades e a família. Tudo sempre com o pano de fundo da Segunda Guerra Mundial, da perda da Palestina e do estabelecimento de Israel, do fim da monarquia egípcia, dos anos Nasser, da guerra de 1967, da emergência do movimento palestino, da guerra civil libanesa e do processo de paz de Oslo.

As memórias de Edward Said nos permitiram pensar a respeito da escrita autobiográfica do autor, refletindo sobre seu intenso sentimento de deslocamento, de exilado, o que influencia na constituição de sua identidade. Na escrita de si, o pensador se identifica como um fora do lugar e ao longo de toda narrativa constrói a imagem disso, mostrando-nos como, desde muito jovem, era um desarticulado, inclusive, chegando ao fim de sua vida, como alguém dissonante.

Nesse seu processo de autoarquivamento, Said mostra-nos a sua necessidade de estabelecer uma conexão entre a sua vida presente e o passado no mundo árabe, a fim de manter a disciplina na escrita, combatendo o sofrimento da doença, e tecendo a sua própria existência. Assim, a leitura das memórias de Said nos possibilitou a reflexão a respeito de que a memória é constituída por traços, cuja construção e reconstrução é sempre parcial, formando certa imagem do passado.

Para nós, especificamente, esse pensamento, gera um questionamento a respeito de como determinada memória da Antiguidade é feita e apresentada ao público atualmente nos museus – seria uma Antiguidade objetos expostos com intenções legitimadoras? De constituir a identidade de um lugar?

Enfim, além dessas questões, outras também surgiram a partir dessa leitura do livro de Said em conjunto com o nosso interesse pelo mundo antigo: os museus e demais lugares de memórias, bem como os pesquisadores, realizam a construção de identidades, no tempo-espaço? Com quais tipos de objetos e traços? Os legitimadores? Os deslocados?

  • Camilla Miranda Martins

Os Antigos Gregos no acervo do Museu Paranaense: Recepção dos Clássicos, poesia simbolista e política.

Imagem: divulgação.

O livro “Os antigos gregos no acervo do Museu Paranaense: Recepção dos clássicos, poesia simbolista e política”, da professora Dra. Renata Senna Garraffoni, integra a coleção “Histórias do Paraná” que em sua essência visa promover a diversidade de temas, personagens e narrativas que destoam de propensões voltadas a uma história hegemônica do Estado.

Voltado ao debate sobre a releitura greco-romana no Paraná na virada do séc. XIX e nas primeiras décadas do XX pelos poetas simbolistas, o livro apresenta ao leitor os primeiros passos de uma pesquisa em constante transformação. Para tanto, Garraffoni retoma ao simbolismo francês que possui na recepção greco-romana importantes releituras políticas e estéticas, debates que chegam ao Brasil e ecoam fortemente entre as elites literárias curitibanas.

Muitos desses jovens simbolistas, em suma Republicanos, encontraram nos franceses e na retomada dos símbolos greco-romanos armas legitimadoras frente aos embates políticos da recente república brasileira. Esse resgate no Paraná, teve no poeta Dario Vellozo, seu principal porta voz, professor do Colégio Estadual, o simbolista caracterizou-se como uma das principais fases do movimento, ao lado de Emiliano Pernetta, coroado em 1911 “Príncipe dos poetas” durante a festa pagã da Primavera promovida por Vellozo.

Longe de apontar respostas o livro abre caminho para pesquisas posteriores, apresentando ao leitor as constantes tensões temporais presentes nesse resgate dos clássicos e seu papel perante a política, literatura, construções de identidade e projetos de poder na virada do séc. XIX e nas primeiras décadas do XX. Disponível online no site do museu Paranaense, o livro traz, por fim, um catálogo com como amostragens do acervo do Museu Paranaense e do Instituto Neo-Pitagórico, que segundo a professora, são recortes de permitem ao leitor perceber a diversidade da produção literária, contando com fotos, moedas e a própria coroa de louros de Emiliano Pernetta.

GARRAFFONI, Renata Senna. Os antigos gregos no acervo do Museu Paranaense: Recepção dos clássicos, poesia simbolista e política. Curitiba: Samp, 2018.

Disponível em: http://www.museuparanaense.pr.gov.br/arquivos/File/Livros3/antigosgregosFINAL.pdf

  • Mikaely Santos

Máscaras, espadas e machado: assimilações e trocas entre poetas e artesãos em Atenas Clássica

Teatro de Dionísio em Atenas. Fonte: © Galina Mikhalishina/Shutterstock.com

O capítulo Máscaras, espadas e machado: assimilações e trocas entre poetas e artesãos em Atenas Clássica foi escrito pelos historiadores Alexandre Cerqueira Lima e Talita Nunes Silva e se encontra no livro Teatro Grego e Romano: História, Cultura e Sociedade, organizado por Ana Livia Bomfim Vieira e Claudia Beltrão da Rosa. Nesse capítulo, Lima e Silva escrevem sobre a relação entre as peças de teatro e as produções artesanais em cerâmica feitas em Atenas no período clássico. O texto é dividido em duas partes, sendo a primeira escrita por Lima e a segunda por Silva. A introdução aborda como o regime democrático em Atenas abre espaço para encenações teatrais cômicas, estabelecendo o teatro do período como a “vitrine” da pólis, ou seja, um meio de demonstração e circulação de ideias e representações – seja para os próprios cidadãos atenienses ou para estrangeiros. Outro ponto importante para o qual Lima chama atenção é o caráter de sacralidade da produção teatral, que protegia a expressão de opiniões políticas. Além disso, o autor indica que a existência de pinturas em cerâmicas criadas a partir de temas ou passagens de peças teatrais demonstra como o teatro passou a ser uma manifestação cultural importante no repertório dos artesãos da Ática.

Em seguida, Lima aborda a questão do espaço para a representação, na qual ambos os teatrólogos e os ceramistas encontram limitações. O espaço do teatro está presente na obra do escritor teatral, como é possível observar em indicações de atores se dirigindo diretamente para a plateia e se movimentando para fora do palco. Lima relaciona essa dimensão teatral com o conceito de espaço heterotópico elaborado por Michel Foucault – no sentido que, no teatro, o espaço físico real é sobreposto por diversos espaços ilusórios durante as peças. As máscaras são um elemento importante nesse aspecto, porque são elas que permitem essa separação entre o ator e o seu personagem. Além disso, elas são consideradas unidades formais mínimas que indicam que uma cena representada na cerâmica, por exemplo, seja uma imagem de teatro.

Na segunda parte do capítulo, Talita Nunes Silva coloca essas questões em prática ao analisar a figura da personagem Clitemnestra na iconografia da cerâmica. A autora aponta que a arma específica utilizada pela personagem para realizar seus homicídios é fonte de diversos debates, já que, na tradição literária anterior às tragédias de Ésquilo, a descrição da arma era extremamente vaga – a única indicação era ser uma arma de dois gumes. No Período Arcaico, havia um conceito na tradição iconográfica que representava essa arma como uma espada, e é com essa arma que os assassinatos foram retratados nas peças de teatro de Ésquilo. Partindo da análise de algumas figuras em cerâmica do período entre 480 a 440 a.C. que retratam a personagem também com uma espada, Silva busca verificar se essa representação pode classificar Clitemnestra como uma figura “transgressora”. Segundo a autora, a utilização da espada, que é tradicionalmente associada ao masculino, demonstra uma postura viril e atribui um caráter racional aos assassinatos. Portanto, ao associar a manipulação premeditada da espada a Clitemnestra, ocorre a representação de uma mulher bem-nascida assassina, masculina e consequentemente transgressora. Silva conclui que, mais importante do que definir se as figuras em cerâmica encontradas são uma assimilação direta da dramaturgia de Ésquilo, é perceber sua existência como indicação de que, na iconografia do Período Clássico, coexistia uma percepção de Clitmenestra como uma figura transgressora ao comportamento feminino tradicional da sociedade ateniense.

Referências

LIMA, Alexandre Carneiro Cerqueira; SILVA, Talita Nunes. “Máscaras, espadas e machado: assimilações e trocas entre poetas e artesãos em Atenas Clássica”. In: Teatro Grego e Romano: História, Cultura e Sociedade. VIEIRA, Ana Livia Bomfim; ROSA, Claudia Beltrão da (og.). São Luís: Café e Lápis; Ed. UEMA, 2015.

  • Letícia Schevisbisky de Souza

A beleza e o mundo clássico

O primeiro lançamento da coleção “Fluir Perene”, escrito por José Ribeiro Ferreira e Rui Morais, o livro intitulado A Busca da Beleza, A arte e os artistas na Grécia Antiga narra de maneira acertada, para os entusiastas da História Antiga, como a Arte originou-se e foi incorporada dentro dos processos de edificação, do que hoje conhecemos como às primeiras civilizações da Antiguidade Clássica.

Destinado, logo no prefácio, como um complemento a gama de conhecimentos já incorporados pelos teóricos, de acordo com Ferreira (2008, p.5) “o estudo sobre […] a arte e os artistas na Grécia Antiga destina-se fundamentalmente ao ensino universitário e aos alunos que estudam a arte grega e romana, embora não desdenhe o interesse de público mais vasto.”. Apresentando-se como suporte na busca pela conquista de novos públicos, externo aos muros da Universidade, as páginas procuram despertar a curiosidade do leitor acerca de temas como a arquitetura, envolvida na elaboração dos grandes templos, através das mais conhecidas técnicas de colunas gregas, Dóricas, Jônicas e Coríntias – artifícios gravados na fachada exterior do Prédio Histórico da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Aprofundando gradativamente as proposições, estendendo-se ao manusear das cerâmicas, das pedras, entre outros materiais, essencialmente empregues na construção dos principais símbolos da identidade, das tradições e da cultura, responsáveis pela manutenção das esferas sociais e administrativas desses povos.

Nesse sentido, para finalizar a leitura de maneira instigante, os autores apresentam uma análise descritiva da construção de Atenas, cidade chamada de “Escola da Hélade”, apresentando aos leitores como a concepção de uma Acrópole fundada em ideais de igualdade, cultura, liberdade e progresso, influenciaram e ainda influenciam na formação das estruturas democráticas atuais, compreensão que nos afasta do ideal único de beleza e ornamentação, estigma associado aos povos gregos, sem abandonar a entonação narrativa estimulante, deveras provocativa. Uma visita ao clássico, sem perder de vista o contato com o presente.

Referência bibliográfica

FERREIRA, J. R.; MORAIS, R. A Busca da Beleza A arte e os artistas na Grécia Antiga. Coimbra: Simões & Linhares, 2008.

  • Letícia Bail

O príncipe Carataco: nacionalismo e construções ideológicas do masculino a partir do século XVI

Olá pessoal, tudo bem com vocês? Nós estávamos um pouco afastados, nos organizando frente a este cenário que estamos vivendo, mas com saudades desse nosso espaço aqui. Voltamos hoje com algumas novidades. Iremos postar nos próximos dias materiais para didáticos que podem auxiliar nossos colegas professores na tarefa de organizar as aulas não presenciais. Hoje, ficamos com a dica de leitura de Mariana Fujikawa: “O príncipe Carataco: nacionalismo e construções ideológicas do masculino a partir do século XVI”, escrito por Renato Pinto.

Esperamos que estejam todos bem ! Cuidem-se!

Gravura: Caractacus before the Emperor Claudius at Rome, c. 1800. A força física de Carataco contrasta com a fragilidade e afetação do imperador Cláudio. Imagem e descrição retiradas da tese de Renato Pinto “Duas Rainhas, um Príncipe e um Eunuco: gênero, sexualidade e as ideologias do masculino e do feminino nos estudos sobre a Bretanha Romana”.

O respectivo texto compõe a obra Antiguidade como presença: Antigos, Modernos e Usos do Passado, organizada e revisada por Glaydson Jose da Silva, Pedro Paulo A. Funari e Renata Senna Garrafoni. Nesse, Pinto discute como o príncipe bretão Caracato foi ressignificado nas artes e no meio acadêmico como um símbolo de masculinidade. Aponta o autor que a representação de sua imagem serviria aos propósitos do Estado inglês que estava nascendo nesse contexto e seu modelo de masculinidade seria ressaltado como uma virtude herdada pela modernidade inglesa.

O autor ressalta que essa pesquisa é possível devido ao fato de que nas últimas décadas houve um aumento nas publicações e pesquisas que debruçam-se sobre o masculino. Afirma, ademais, que os discursos que se pretendem como hegemônicos hierarquizam o mundo.

Carataco teria sido um príncipe, que, ao ser utilizado, ajudou a construir essas noções de hegemonia sobre o que deveria ser o masculino: ele seria um bretão que resistiu a conquista do Império Romano, mas que fora – afinal – capturado. Porém, afirma Tácito que Caracato comandava com tão forte autoritária e era tão afeiçoado ao seu povo que o imperador romano Claudio teria o perdoado e deixado que vivesse.

Essa figura do bretão como um líder da resistência foi importante em um contexto em que a Inglaterra estava em constante conflito com a França, com o movimento de independência americana e de outros povos das ilhas britânicas.

Por fim, conclui Pinto que os ideais de masculinidade e de feminilidade foram construídos. A retomada de figuras do passado, como a de Caracato, serviu como um importante aparato ideológico de legitimação das normas de conduta das mulheres e também dos homens. Ademais, finaliza seu artigo ressaltando que os conceitos dos Usos do Passado são importante referencial teórico-analítico dessas questões.

PINTO, Renato – “O príncipe Carataco: nacionalismo e construções ideológicas do masculino a partir do século XVI.” In: FUNARI, Pedro Paulo; GARRAFFONI, Renata Senna; SILVA; Glaydson José. Antiguidade como presença: Antigos, Modernos e Usos do Passado. Curitiba: Editora Appris, 2019.

  • Mariana Fujikawa

Uma perspectiva original sobre os primeiros seguidores de Jesus

Paulo Nogueira, Narrativa e cultura popular no Cristianismo Primitivo. São Paulo, Paulus, 2018.

Há uma controvérsia historiográfica de longa data: seria o cristianismo dos primeiros seguidores de Jesus uma prática de excluídos e pobres? Ou seria um movimento já de início hierárquico e com seguidores abastados? Ou ambos? Paulo Nogueira procura escapar dos desafios do dilema por meio de uma metodologia original, o estudo do sistema de linguagem, como sugerido por Mikhail Bakhtin e Aaron Gurevich, tomando a cultura como um sistema semiótico. Considera o cristianismo primitivo, antes do Edito de Milão de 313 d.C., como religiosidade popular, tanto ao se originar no povo, como ao se organizar como religiosidade popular. Assim, Paulo de Tarso, embora letrado e estudado, é considerado como pertencente às classes baixas, como também a literatura extra canônica, como os Atos Apócrifos.

Detecta, ainda, a ousada afirmação de autonomia e autoridade de mulheres no cristianismo paulino. Lançavam mão de imaginação narrativa nas quais invertiam as relações sociais por meio da ficcionalidade, ou seja, do poder de estabelecer relações potenciais, mesmo quando não realistas, por meio da linguagem. Daí relatos fantasiosos, improváveis ou mesmo contrários à experiência, tão comuns nas narrativas mitológicas e populares. Os textos articulavam-se como contra narrativas, a partir de características dos personagens retratados como estrangeiros, de status social baixo, suspeitos de magia, ou de outras práticas sobrenaturais. As narrativas ficcionais afirmavam valores dos grupos subalternos e são subversivas, ao questionarem o status quo. Conclui que as categorias e as formas narrativas da cultura popular por meio das quais o cristianismo primitivo se articulou resistem à mera emulação ordenada e passiva de formas de narrar das elites. Religião de marginalizados e de pessoas desprovidas de poder em sua grande maioria, de pregadores bilíngues, multiculturais, itinerantes, urbanos, praticante de uma religião de conversão e de êxtase religioso, os cristãos formavam um movimento religioso das classes baixas do Império

As objeções à proposta de Paulo Nogueira podem advir de diversas direções, a começar da exegese dogmática ou tradicional, como ele reconhece. Para o estudioso da Antiguidade, haveria outras questões, em particular como lidar com as manifestações de erudição e estudo sistemático, como em Paulo de Tarso, ou a referência, desde o mesmo Paulo, a abastados cristãos, em cujas casas se encontrava a comunidade cristã? Abastados cristãos comiam com não cristãos carne de sacrifícios aos deuses, sempre como menciona Paulo. Ou, então, como acomodar a presença de mulheres atuantes e outras reprimidas, senhoras ricas e pobres excluídas, presentes nas narrativas? Parece que a solução desses dilemas esteja em algo não explicitado por Paulo Nogueira: a sua escolha ética por explorar e valorizar o lado subalterno, popular, do cristianismo antigo. Livro de fácil leitura e linguagem clara, é um convite prazeroso a refletir sobre questões teóricas e metodológicas das mais relevantes, e, também, a conhecer um pouco desse imenso e pouco conhecido manancial literário e cultural antigo. Interessante em si mesmo e, ainda, fonte de reflexão sobre nossa própria época, suas aporias e desafios. Haveria algo mais relevante do isso, ainda mais nos dias de hoje?

 Disponível para degustação e compra aqui.

  • Pedro Paulo A. Funari

A Natureza ama ocultar-se: Pierre Hadot e o estudo da natureza

Famoso por seus livros e estudos sobre a filosofia antiga, nos quais propunha a tese de que a atual disciplina se configurava, na Antiguidade, como um modo de ser e de agir no mundo: ou seja, o pensamento provinha do modo de vida, Pierre Hadot dedica-se, mais para o final de sua carreira acadêmica  ao estudo da ideia de natureza e das atitudes que, do pensamento grego ao moderno pensamento ocidental, se estabeleceram sobretudo na história europeia com relação ao mundo natural. Tal estudo resulta em um livro que, segundo o autor, é empenho de quase toda sua trajetória de vida.

E é na frase de Heráclito, a qual Hadot traduz como “a natureza ama ocultar-se” que esse estudo que abarca 25 séculos de diacronia se inicia. Para Hadot, a atitude deu início a uma compreensão da natureza enquanto entidade e ao estudo dela tanto na vontade de compreendê-la quanto na noção de que há sempre algo de incompreensível e de maior. A interpretação da natureza resulta em diferentes correntes de pensamento na Antiguidade e segue influenciando o pensamento também na era moderna. Inaugura-se lá a representação desse mistério como uma entidade divina, associando a Ártemis-Ísis, e a compreensão de que a Natureza poderia ser vista como uma mulher, mãe, nutriz ou diva, em uma concepção também misteriosa e incontrolável de divindade.

Para o autor as duas principais atitudes que se desenvolvem sobre a natureza, passando também pelas concepções cristãs de arcana que não devem ser compreendidas, seriam o que chama de atitude Prometeica e atitude Órfica. Na prometeica, lembrando o mito grego, os cientistas e filósofos entenderiam a humanidade como potência sobre essa entidade: ela pode ser estudada, compreendida, dominada, utilizada para o proveito humano. Essa atitude lembra a concepção de progresso humano e tecnológico. Na Órfica, mais vinculada a princípio com a arte e a poesia, percebe-se uma concepção de respeito a esses mistérios, de desenvolvimento e revelação dos segredos por obra de toda a humanidade e, por vezes, uma personificação da natureza como brincalhona, como pródiga, como uma linguagem a ser descoberta.

Em um estudo complexo e que não se resume a alguns poucos conceitos, Hadot parece auxiliar, com esse livro, a perceber um pouco melhor nossas formas de entender, a partir da filosofia, nossa relação com tudo o que chamamos de natural e que parece tão diverso da nossa ideia de humanidade. Embora parte desse estudo pareça distante da atualidade, ele pode auxiliar a compreender um pouco também os discursos tão presentes atualmente nos debates entre desflorestamento, preservação do meio ambiente, e as concepções  sugeridas quando se diz que a natureza pode vingar-se da poluição que geramos, ou que estamos ferindo a mãe natureza, assim como as noções de que devemos explorá-la para progredir. Hadot não toma posições explícitas em debates acalorados, mas vale a leitura para refletir mais sobre a situação do presente.

HADOT, Pierre. O véu de Ísis: ensaio sobre a história da ideia de natureza. São Paulo: Ed. Loyola, 2006

  • Alexandre Cozer

Estudos Sobre Esparta

Fábio Vergara Cerqueira e Maria Aparecida de Oliveira (Organizadores) – Estudos Sobre Esparta.
(Editora UFPel, 2019)

Há poucos livros no Brasil que se dedicam a História de Esparta. Foi pensando nisso que Fábio Vergara Cerqueira e Maria Aparecida de Oliveira e Silva organizaram a obra, Estudos sobre Esparta, uma coletânea que reúne textos de estudiosos brasileiros e estrangeiros. O interessante do trabalho é que mescla textos em português, espanhol, francês e inglês, mas como tem uma linguagem clara e objetiva, atinge um público amplo desde acadêmicos e estudiosos até as pessoas que estão iniciando suas pesquisas ou que querem conhecer um pouco mais sobre o passado desse povo. Outro motivo para a leitura da obra é os autores e autoras se esforçam para trazer os aspectos cotidianos e culturais dessa sociedade: há capítulos sobre o período arcaico, o clássico, o helenístico e o romano, mudando nosso olhar sobre os espartanos e espartanas, pois para além da perspectiva guerreira, mais explorada na mídia ou livros didáticos, somos introduzidos a seus mitos, suas crenças religiosas, seu pensamento político e social.

E o melhor de tudo: é uma publicação da Editora UFPel (Universidade Federal de Pelotas), com download gratuito da obra completa. Visite o site e conheça a obra, vale à pena!

  • Renata Senna Garraffoni

A tradição clássica e o Brasil

Lançado em 2008, pela editora Fortium, o livro “A tradição clássica e o Brasil” conta com a colaboração de diferentes autores, dentre eles a Doutora Renata Senna Garraffoni e o Doutor Pedro Paulo Funari. Organizado em subtemas por André Leonardo Chevitarese (UFRJ), Gabriele Cornelli (UnB) e Maria Aparecida de Oliveira Silva (USP), tem como propósito de pormenorizar aos leitores, como a Antiguidade Clássica tem marcado as mais diversas instituições governamentais e esferas sócio-culturais da contemporaneidade, pela presença e usualidade, de forma agradável e cativante.

Dividido em dois blocos complementares, o exemplar expõe em sua primeira parte como os clássicos tangem as áreas de ensino no Brasil. No decorrer da edição, a História é apresentada não só como horizonte de pesquisa, mas também como matéria de ensino, através da concepção de livros didáticos, até a abordagem historiográfica nas universidades, convidando a uma leitura crítica, enquanto alcança questões substanciais dentro do campo da história-disciplina e da memória, contestando a repetitiva caracterização dos antigos como corpos sociais coesos e harmoniosos, credores de proeminência em relação as demais culturas.

Já no que concerne a tradição clássica no âmbito da sociedade, a segunda seção disserta quanto a inclinação dos escritores para relatar a história ateniense, consectário de uma projeção de conceitos idealizados, pautados nas copiosas fontes materiais e de como esse cenário influenciou, de certo modo, uma historiografia escrita por brancos e destinada para brancos, ou da elite para a elite. A distinção ultrapassa as fronteiras raciais e atinge as estruturas sociais, atributo da consequente inexistência de indivíduos que sejam protagonistas de sua própria História.

Dessa maneira, a obra finda com as incontáveis vias pelas quais os temas clássicos alcançam múltiplos lugares nas civilizações existentes, começando pelo campo do conhecimento e daquilo que conhecemos através das representações, adentrando o imaginário dos estudiosos e das futuras gerações, sem deixar de lado suas complexidades, uma inesgotável fonte de indagação e de análises.

Referências
CHEVITARESE, André L., CORNELLI, Gabriele., SILVA, Maria A.O. (Orgs.). A tradição clássica e o Brasil. Brasília: Editora Fortium, 2008.

  • Letícia Bail