Guerra e Escravidão no Mundo Romano

O texto “Guerra e Escravidão no Mundo Romano”, escrito por Fábio Duarte Joly, constitui o sétimo capítulo do livro “História Militar do Mundo Antigo”, organizado por Pedro Paulo A. Funari, Margarida de Carvalho, Claudio Umpierre Carllan e Érica Cristyane Morais da Silva. Nesse texto, Joly realiza uma discussão acerca das revoltas de escravos na Roma antiga – especificamente as que ocorreram na Sicília e na Península Itálica, nos séculos II e I a. C –, apontando diversas questões oferecidas pelas fontes que merecem maiores estudos. A primeira discussão que levanta é sobre como a leitura de que, na sociedade romana, o exército era composto somente por cidadãos é uma tentativa de homogeneização – já que fontes como cartas de Plínio a Trajano atestam a presença de escravos nas tropas, seja como auxiliares de seus senhores ou recrutas ilegais. A partir dessa discussão, Joly apresenta alguns questionamentos sobre a permeabilidade da fronteira entre cidadão e escravo – destacando essa área como uma que necessita de maiores estudos.

Sobre as revoltas de escravos, o autor chama atenção para as diversas leituras realizadas sobre as fontes: Espártaco, por exemplo, foi lido no século XVIII como um ícone de inspiração na luta por liberdade política na Europa; posteriormente, foi transformado pela leitura marxista em um símbolo de revolução proletária. Além disso, também é apresentado como autores de língua latina (como Floro e César) se referem a Espártaco como um tumulto marcado por pouca organização e ausência de comando – não utilizando, portanto, a denominação de “guerra”, que seria reservada à atuação de homens livres e bem organizados. Já autores de língua latina (como Diodoro da Sicília e Plutarco) atribuem aos líderes das revoltas de escravos um olhar mais positivo. Dessa forma, Joly conclui que o discurso sobre as guerras servis tem relação com a construção da identidade grega ou romana.

O autor conclui seu texto com uma reflexão a respeito do que define o sucesso de uma revolta servil, defendendo que a visão de que as revoltas escravas são fadadas ao fracasso devido a uma incapacidade inata de organização dos escravos deve ser contestada. Isso deve ser feito implementando novos olhares às fontes – que, por apresentarem a visão da classe senhorial, são utilizadas para salientar uma ausência de grandes objetivos por parte dos escravos.

Referência:
JOLY, Fábio Duarte. “Guerra e Escravidão no Mundo Romano”. In: CARLAN, C. U.; CARVALHO, M. M.; FUNARI, P. P.; SILVA, E. C. M. (org.). História Militar do Mundo Antigo. São Paulo: Annablume, 2012, pp. 139-149.

  • Letícia Schevisbisky de Souza

A imagem da Grécia Antiga como uma ferramenta para o colonialismo e para a hegemonia europeia

Martin Gardiner Bernal (foto: Harvey Ferdschneider)

O texto “A imagem da Grécia Antiga como uma ferramenta para o colonialismo e para a hegemonia europeia” foi escrito por Martin Bernal e compõe a obra Repensando o Mundo Antigo, organizada e revisada por Pedro Paulo A. Funari, com a tradução de Fábio Adriano Hering e de Glaydson José da Silva. Nesse, Bernal discute como a área dos Estudos Clássicos, apesar de muitas vezes entendida como distante do dia a dia da sociedade, na verdade “tem sido marcada por uma atitude francamente política” e, portanto, é muito atual. A Grécia Antiga foi pensada ao longo dos séculos de acordo e, muitas vezes, justificando a política do período em que é estudada, a exemplo do imperialismo e do neocolonialismo no caso em questão. Nesse sentido, Bernal identifica que existem entre os ocidentais dois modelos principais para se entender as origens da Grécia Antiga. O primeiro seria o Modelo Antigo e o segundo o Modelo Ariano.

De acordo com o Modelo Antigo, aceito até o fim do século XVIII, “a Grécia teria sido habitada por tribos primitivas – como os pelasgos, entre outros – sendo posteriormente, colonizada pelos egípcios e pelos fenícios”. Enquanto para o Modelo Ariano, pensado principalmente a partir do Romantismo, Racismo e do conceito de progresso na Europa, “os gregos que começavam então a serem vistos como particularmente virtuosos, foram, de certa forma, convocados para se tornarem setentrionais, pois não poderiam ter recebido a herança de sua civilização das luxuriantes e decadentes regiões meridionais e orientais”. Além disso, o Modelo Ariano também se baseou nos argumentos de que em algum período da história teria havido uma única linguagem proto-indo-europeia, “desta forma, se o grego era uma língua indo-europeia, em algum estágio ele deveria ter sido introduzido na Europa, a partir do Norte”.

Contudo, segundo Bernal, a negação à influência Fenícia não foi aceita devido aos interesses dos Ingleses sobre a história desse povo, considerado manufatureiro, comerciante e civilizador. Desta maneira, a origem da Grécia Antiga passou então a ser baseada no Modelo Ariano Ampliado, o qual rejeitava apenas as influências egípcias. Esse permaneceu até o início do século XX, quando o antissemitismo se espalhou na Europa. Com a Segunda Guerra Mundial e a percepção das graves consequências trazidas pelo racismo – como o holocausto – o povo judeu passou a ser entendido novamente como europeu, apesar de não terem havido muitas mudanças para a recuperação da “reputação” dos fenícios. Desse modo, a partir da década de 1960, observamos as tentativas para trazer de volta o Modelo Ariano Ampliado.

Com as mudanças de visão política, novos estudiosos e novas descobertas acerca das influências egípcias no Egeu, o Modelo Ariano perdeu força e cedeu espaço para a reaceitação do Modelo Antigo. Entretanto, segundo Bernal, o “erro” do antissemitismo não foi suficiente para derrubar o Modelo Ariano, uma vez que existem evidências que sustentam a teoria da língua indo-europeia. E, desse modo, há a necessidade de novos debates para definição de um novo Modelo para o estudo da Grécia Antiga, o qual consiga relacionar as melhores características dos dois modelos, mas que para o autor, deverá se aproximar mais do Modelo Antigo. Na medida em que o Modelo Ariano é uma visão eurocêntrica de legitimação da hegemonia, autoritarismo e superioridade europeia e, a Grécia era possuidora de uma cultura com completamente eclética e mesclada.

Referências

BERNAL, Martin. A imagem da Grécia antiga como uma ferramenta para o colonialismo e para a hegemonia europeia. In: FUNARI, Pedro Paulo (org.). Repensando o mundo antigo – Martin Bernal, Luciano Canfora e Laurent Olivier. Textos Didáticos. nº 49. Campinas: IFCH/UNICAMP, 2005, p.11-31.

  • Barbara Fonseca

Construções do Passado, Armações do Presente

Richard Hingley – O Imperialismo Romano: Novas Perspectivas a partir da Bretanha
(Annablume, 2010)

A obra “O imperialismo romano: novas perspectivas a partir da Bretanha” é um compilado de quatro artigos, do professor Richard Hingley, publicado em 2010, no Brasil. Eles foram originalmente lançados durante as décadas de 1990 e 2000, e dialogam com o processo ocorrido nos anos que marcam a virada da República para Império: a “Romanização”, ou seja, a disseminação cultural e o aumento territorial romanos. Porém, a perspectiva de Hingley não é a mesma da historiografia tradicional, mas sim fruto do movimento pós-colonial, que despontou com Edward Said a partir da década de 1970.

O livro já abre com uma reflexão acerca da utilização que o Império Britânico fez, através de seus estudiosos e políticos, de Roma para sustentar suas aspirações imperialistas; assim como também sobre a variedade cultural existente, e apagada pela historiografia, no Império Romano – que ia muito além daquela das elites, contrapondo-se a ideia de aculturação total de nativos em todos os cantos do território romano. Depois, o livro encaminha para a questão da cultura material e as interpretações arqueológicas das quais é alvo, focando nos sítios romano-bretões. Adiante, vem um artigo que pode ser sumarizado com o nome deste blog: História Antiga e Conexões com o Presente. O ponto levantado por Hingley é sobre os Estudos Clássicos e como eles podem, e são, moldados para justificar discursos contemporâneos, por mais que para isso tenham que distorcer o passado. Por fim, tomando o monumento arqueológico “Muro de Adriano”, o historiador inglês aborda o abandono de temas que foram de grande importância para a construção de identidades, simbolismos e fronteiras, e a importância de suas retomadas, até mesmo para novas perspectivas de estudos.

Traduzidos para o português visando arejar os estudos de História Antiga no Brasil, esses artigos são muito interessantes para levar quem os lê a repensar os meios como são reproduzidos os discursos baseados num passado distante – seus interesses, métodos e apagamentos. Ainda por cima, a leitura é muito fluída e tranquila, não sendo necessário nenhum grande arcabouço teórico prévio para se compreender a mensagem de Hingley.

  • André S. N. Pinto

Deuses e Homens na Cidade

Maurizio Bettini – Dèi e uomini nella Città
(2014)

O livro de Maurizio Bettini, Deuses e Homens na Cidade, ou Déi e Uomini nella Città, publicado em 2014 pela consagrada Feltre da Itália consiste em ótimo exemplar de como a tradição italiana, dentro de debates filosóficos sobre a linguagem, a sociedade, a cultura e, principalmente a religião, tem dialogado e reinventado instrumentos importantes que nos foram legados pelos estruturalistas dos anos 1960. Com um método de antropologia religiosa baseado na linguagem, o intelectual, que já publicou diversas obras com temáticas literárias e que tem se mostrado relevante na discussão do que seria a literatura antiga (a exemplo do traduzido recentemente “O espaço literário na Roma Antiga”), expressa agora suas leituras sobre traços da religião romana. O leitor leu bem: traços. É essa a principal reviravolta com relação ao estruturalismo de Dumézil, Éliade e Benveniste – com os quais discute inúmeras vezes no livro. Em lugar de buscar, a partir das discussões de linguagem, estabelecer uma visão abstrata e completa da cultura Romana, Bettini trabalha selecionando temas importantes para o debate sobre o passado mas, permanecendo no específico, prioriza discussões com a tradição de pensamento classicista. Assim, já informado pelo feminismo, o livro debate temas como a presença ou não de uma cosmogonia na religião romana, o que era a o conceito de auctoritas e de que maneira ele surgiu na cultura romana, o lugar religioso do lar familiaris e o próprio conceito de deus menor no espectro religioso romano, o papel da morte na cultura e na organizzação da sociedade, bem como da máscara do morto e sua relação com o teatro, e até mesmo o clássico conceito de interpretatio, tão debatido pelos classicistas para explicar as incessantes apropriações que faziam os latinos de aspectos religiosos e de deuses de culturas como a grega, a egípcia, a síria, a cartaginesa etc. Embora o livro não apresente conclusão, fica a nós leitores, além de uma enorme carga de conhecimento e um posicionamento inteligente sobre algumas das principais discussões dos estudos de Religião Romana, uma interpretação das crenças romanas como práticas abertas e frequentemente dispostas às transformações e inclusões de culturas, além de instrumentos para continuar os ricos debates de linguagem sem a pretensão, por vezes exagerada, de reduzir a cultura romana e sua história de mais de um milênio a poucos conceitos que cremos largos o suficiente para a grande diversidade da experiência.

Qual César nós (re)conhecemos?

Maria Wyke – Caesar: A life in Western Culture
(Granta Books, 2007)

Os trabalhos da professora Maria Wyke são conhecidos pela forma criteriosa como ela estabelece as conexões entre o mundo Romano e a contemporaneidade. Desde “Projecting the past: Ancient Rome, Cinema and History” (Routledge, 1997) suas obras têm se destacado na área de estudos de recepção do passado clássico, em especial, a análise das representações cinematográficas. Em “Caesar: a life in western culture”, a professora da University College of London vai além e expõe como, ao longo dos séculos, a imagem de César tornou-se o epicentro de uma série de apropriações históricas, fomentando as mais variadas releituras deste personagem por parte da cultura ocidental.

Ao longo da obra, dividida em nove capítulos (cada um relacionado a uma característica atribuída a um período marcante da vida do general romano), Wyke se propõe a responder quais fatores levaram César a se tornar o mais famoso dos romanos. A autora aponta como, embora a sua biografia e morte trágica tenham colaborado para que sua figura se cristalizasse em um personagem a ser rememorado, o próprio César teve um papel essencial na construção dessa imagem ainda em vida, imagem da qual ele era extremamente zeloso.

Assim, por meio de extensa pesquisa, Wyke nos conta como o general romano teve sua vida recriada em diferentes momentos históricos, formando um caleidoscópio de imagens nem sempre convergentes: inspiração dramática para as obras de Shakespeare, líder submetido pelo desejo por Cleópatra, militar cruel ou vítima de uma terrível conspiração. Destacando como a biografia do líder romano é marcada por intensa polarização, a autora demonstra como esta foi utilizada ora como modelo de conduta (em especial no que se refere às vitórias militares), ora como exemplo a não ser seguido (considerando a sua tumultuada vida pessoal), e, por muitas vezes, base para a criação de narrativas ficcionais na literatura, cinema e arte, as quais passam a fazer parte da tradição clássica e marcar a forma como nos relacionamos e reconhecemos o mundo antigo.

  • Lorena Pantaleão