A Natureza ama ocultar-se: Pierre Hadot e o estudo da natureza

Famoso por seus livros e estudos sobre a filosofia antiga, nos quais propunha a tese de que a atual disciplina se configurava, na Antiguidade, como um modo de ser e de agir no mundo: ou seja, o pensamento provinha do modo de vida, Pierre Hadot dedica-se, mais para o final de sua carreira acadêmica  ao estudo da ideia de natureza e das atitudes que, do pensamento grego ao moderno pensamento ocidental, se estabeleceram sobretudo na história europeia com relação ao mundo natural. Tal estudo resulta em um livro que, segundo o autor, é empenho de quase toda sua trajetória de vida.

E é na frase de Heráclito, a qual Hadot traduz como “a natureza ama ocultar-se” que esse estudo que abarca 25 séculos de diacronia se inicia. Para Hadot, a atitude deu início a uma compreensão da natureza enquanto entidade e ao estudo dela tanto na vontade de compreendê-la quanto na noção de que há sempre algo de incompreensível e de maior. A interpretação da natureza resulta em diferentes correntes de pensamento na Antiguidade e segue influenciando o pensamento também na era moderna. Inaugura-se lá a representação desse mistério como uma entidade divina, associando a Ártemis-Ísis, e a compreensão de que a Natureza poderia ser vista como uma mulher, mãe, nutriz ou diva, em uma concepção também misteriosa e incontrolável de divindade.

Para o autor as duas principais atitudes que se desenvolvem sobre a natureza, passando também pelas concepções cristãs de arcana que não devem ser compreendidas, seriam o que chama de atitude Prometeica e atitude Órfica. Na prometeica, lembrando o mito grego, os cientistas e filósofos entenderiam a humanidade como potência sobre essa entidade: ela pode ser estudada, compreendida, dominada, utilizada para o proveito humano. Essa atitude lembra a concepção de progresso humano e tecnológico. Na Órfica, mais vinculada a princípio com a arte e a poesia, percebe-se uma concepção de respeito a esses mistérios, de desenvolvimento e revelação dos segredos por obra de toda a humanidade e, por vezes, uma personificação da natureza como brincalhona, como pródiga, como uma linguagem a ser descoberta.

Em um estudo complexo e que não se resume a alguns poucos conceitos, Hadot parece auxiliar, com esse livro, a perceber um pouco melhor nossas formas de entender, a partir da filosofia, nossa relação com tudo o que chamamos de natural e que parece tão diverso da nossa ideia de humanidade. Embora parte desse estudo pareça distante da atualidade, ele pode auxiliar a compreender um pouco também os discursos tão presentes atualmente nos debates entre desflorestamento, preservação do meio ambiente, e as concepções  sugeridas quando se diz que a natureza pode vingar-se da poluição que geramos, ou que estamos ferindo a mãe natureza, assim como as noções de que devemos explorá-la para progredir. Hadot não toma posições explícitas em debates acalorados, mas vale a leitura para refletir mais sobre a situação do presente.

HADOT, Pierre. O véu de Ísis: ensaio sobre a história da ideia de natureza. São Paulo: Ed. Loyola, 2006

  • Alexandre Cozer

Antiguidade Queer: o nu e a obra de Pierre et Gilles.

Desde algum tempo, tem se buscado pensar a Antiguidade fora dos padrões acadêmicos do isolamento da tradição conservadora, do alto conhecimento, ou do gozo estético por padrões perpetrados tanto na História e História da Arte quanto arte mais tradicional. O interesse por justificar a importância sempre atual do estudo do passado grego e romano, bem como por estudar as diferentes formas de apreender e se relacionar com esse período, tem levado intelectuais a se preocupar cada vez mais com as apropriações dos clássicos no presente, ou como preferimos nomear aqui nesse blog, as conexões entre o passado Antigo e o mundo que vivemos.

Na arte, a memória de Roma e de Grécia sempre foi motivo de inspiração. Quem não se lembra de algumas pinturas de arte renascentista ou moderna que exaltam a mitologia grega ou romana? “O Nascimento de Vênus”, de Sandro Boticceli, “Baco e Ariadne” de Tiziano Vicelli, “O Reino de Flora” de Nicolas Poussin ou “O Rapto das Sabinas” de Jaques-Louis David. Pinturas elaboradas entre os séculos XV e XIX buscaram retratar momentos históricos ou mitológicos das culturas antigas na tentativa de manter dessa cultura também os padrões estéticos, a admiração pelo corpo considerado belo, aquele de proporções apolíneas.

Mas enquanto esse corpo nu da obra de arte se diferencia bastante do nu que vemos no cotidiano, em sites ou canais eróticos ou mesmo em revistas de pornografia, Pierre e Gilles buscam associar os dois, levando a realidade atual para o passado de beleza admirável das obras de arte de inspiração mitológica. O casal, que começou a trabalhar junto desde 1976, é formado por um fotógrafo e um pintor, e realiza obras de pintura sobre fotografias misturando as habilidades de cada artista. Nessas composições, entretanto, verificamos diferentes traços da representação artística tradicional associados a padrões estéticos do cotidiano, a elementos e cores exageradas, enfim, a uma estética que nos leva a pensar em pop-art mas também no camp, essa busca queer por realizar algo de bonito a partir de elementos simples e corriqueiros. É comum encontrar em suas composições de ar sagrado sobreposições de luzes de sirene, triângulos de carro, chapéus de marinheiro que lembram fantasias baratas de festas simples etc.

Talvez uma das suas obras mais conhecidas a fazer referência a Antiguidade seja a composição “Mercurio” (2001), que foi amplamente divulgada no ano de 2013 como propaganda da exposição Masculin/Masculin do museu de Orsay. De um lado da folha, os panfletos retratavam a pintura “O pastor Páris” de Desmarais (1787), de outro, a obra de Pierre et Gilles, dois nus de posições semelhantes. O realismo proporcionado pela fotografia, a pintura de tom sensual, o tom escuro e místico que envolvem o deus contrastam com a forma comportada e fria da pintura setecentista e, ao mesmo tempo, levam a admiração do corpo nas artes plásticas a se confundir com a admiração erótica normalmente vivida no cotidiano e não na academia.

Outras obras desse duo de artistas, como tem sido conhecido, propõem diálogos ainda mais vivos entre o passado e o presente, como Medusa em uma blusa comum, ou Narciso nu diante da água, e até Prometeu ou Ganimedes revertendo alguns conceitos da mitologia. Entretanto, suas misturas queer ou camp entre presente e passado antigo não precisam ser vistas apenas como uma representação desinformada. Revertendo com algum riso os cânones da pintura acadêmica, Pierre e Gilles podem nos ajudar a perceber que o apolíneo, o belo imaculado não constituiu sozinho a realidade desse passado antigo, como não constitui sozinho a do nosso presente. Suas representações nos fazem pensar com facilidade a uma antiguidade que tem sido cada vez mais revista: uma do cotidiano, do riso, do erótico misturado ao belo: a das pinturas e esculturas dionisíacas, ou de escritos como o Satíricon, a Priapeia, os textos de Luciano de Samosata ou de Epicuro, e de histórias como as de Adriano e Antinoo.

Sugestões de link:
Análise sobre a conexão entre a Antiguidade e o pensamento Queer:
https://books.openedition.org/momeditions/3350#ftn4

Catálogo de algumas obras dos autores
http://www.muma-lehavre.fr/sites/default/files/atoms/files/fp_2017_pierre-et-gilles.pdf
https://www.templon.com/new/artist.php?la=fr&artist_id=290

  • Alexandre Cozer