Capa do livro Fora do Lugar. Companhia das Letras. Imagem: reprodução.
O livro Fora do Lugar foi escrito por Edward Said pouco antes de seu falecimento em 2003 aos 68 anos de idade, a publicação original é de 1999 e começou a ser escrita pelo intelectual em maio de 1994, enquanto se restabelecia das sessões iniciais de quimioterapia para o tratamento de leucemia. Said, nascido em Jerusalém, foi crítico literário e cultural nos EUA, escreveu vários artigos acerca da questão palestina e livros como Orientalismo e Cultura e Imperialismo. Em Fora do Lugar, o autor tornou a escrita uma ferramenta de prazer em meio ao sofrimento do tratamento de câncer.
O livro trata da vida de Said até 1962, quando terminou o doutorado, sempre nos mostrando um pouco de presente, de como caminhava seu tratamento e de algumas ações recentes relacionadas a isso. A descrição, essencialmente, aborda os lugares onde viveu (Jerusalém, de 1935 até 1947; Cairo, de 1947 até 1951; uma cidadezinha no Líbano, entre 1946 e 1969, durante os verões; e Nova York, a partir de 1951, indo passar os verões no Cairo, isso até ser banido por 15 anos do país por causa de ações ilegais do comércio de seu pai durante os anos Nasser), as escolas e os amigos de cada uma dessas localidades e a família. Tudo sempre com o pano de fundo da Segunda Guerra Mundial, da perda da Palestina e do estabelecimento de Israel, do fim da monarquia egípcia, dos anos Nasser, da guerra de 1967, da emergência do movimento palestino, da guerra civil libanesa e do processo de paz de Oslo.
As memórias de Edward Said nos permitiram pensar a respeito da escrita autobiográfica do autor, refletindo sobre seu intenso sentimento de deslocamento, de exilado, o que influencia na constituição de sua identidade. Na escrita de si, o pensador se identifica como um fora do lugar e ao longo de toda narrativa constrói a imagem disso, mostrando-nos como, desde muito jovem, era um desarticulado, inclusive, chegando ao fim de sua vida, como alguém dissonante.
Nesse seu processo de autoarquivamento, Said mostra-nos a sua necessidade de estabelecer uma conexão entre a sua vida presente e o passado no mundo árabe, a fim de manter a disciplina na escrita, combatendo o sofrimento da doença, e tecendo a sua própria existência. Assim, a leitura das memórias de Said nos possibilitou a reflexão a respeito de que a memória é constituída por traços, cuja construção e reconstrução é sempre parcial, formando certa imagem do passado.
Para nós, especificamente, esse pensamento, gera um questionamento a respeito de como determinada memória da Antiguidade é feita e apresentada ao público atualmente nos museus – seria uma Antiguidade objetos expostos com intenções legitimadoras? De constituir a identidade de um lugar?
Enfim, além dessas questões, outras também surgiram a partir dessa leitura do livro de Said em conjunto com o nosso interesse pelo mundo antigo: os museus e demais lugares de memórias, bem como os pesquisadores, realizam a construção de identidades, no tempo-espaço? Com quais tipos de objetos e traços? Os legitimadores? Os deslocados?
Ao pensarmos no Egito, podemos nos lembrar desde as pirâmides até as múmias e os camelos, sobre ele, temos certo imaginário. Contudo, nesse post, fugindo de sua imagem estereotipada, abordaremos um pouco da história desse lugar e um pouco sobre as práticas rituais de uma parcela de sua população, rituais que exprimem crenças e devoções.
Primeiramente, é importante salientar a localização geográfica do Egito, trata-se de um país do nordeste da África, uma região predominante desértica e que inclui a Península do Sinai (Ásia), sendo assim, um Estado transcontinental. Grande parte da população se concentra, desde a antiguidade (10º. Milênio a.C.), nas margens do rio Nilo.
Na antiguidade a religião predominante da região era politeísta, havendo também a presença de judeus. Essas religiosidades influenciaram e foram influenciadas pelas crenças e pela devoção de gregos, macedônios, persas e romanos, povos com os quais os egípcios mantinham bastante contato, inclusive sofrendo invasão por alguns deles durante alguns períodos. Porém, a presença da cultura africana sempre foi muito intensa, principalmente de povos tribais do sul africano e do deserto do Saara que se instalaram perto do Nilo por volta de 8000 a.C.
Em 639 d.C. a região foi tomada pelos árabes muçulmanos sunitas e o califado islâmico manteve o controle do local, isso até 1517 quando foram derrotados pelos turcos otomanos. Já no século XIX o país passou pelo domínio francês e inglês e somente em 1952 conseguiu sua independência.
Diante de tantas interações culturais de povos e etnias distintas, os hábitos egípcios, muitas vezes, possuem influências diversas. Aqui trataremos especificamente de um ritual conhecido como Zaar, indagando sobre a presença de religiões tradicionais africanas.
Ritual Zaar. Imagem: divulgação.
Zaar, ritual de cura e dança dos espíritos
O Zaar é um ritual específico do Norte de África (Egito, Sudão, Somália e Etiópia), originado provavelmente no século XVIII e é proibido pelo Islã, apesar de ser praticado por parte da população mais humilde. Trata-se de um ritual no qual as pessoas, que estão sofrendo com algo, pedem ajuda para conseguir se harmonizar com seu jin (espírito que a estaria “possuindo”). O ritual se inicia com uma exumação, seguida por cantos e danças que levam essa pessoa a um estado de transe. A kodia é a responsável por saber os cantos de cada jin e de propor o tipo de sacrifício adequado para a sua satisfação. O ritual apenas está completo após o consumo do animal sacrificado – essa última é uma característica comum nos sacrifícios da antiga religiosidade grega, por exemplo.
Cada grupo de Zaar se reúne com certa periodicidade, liderados pela kodia e fazendo o ritual de maneira mais privada, familiar, ou com todos os membros do grupo. Antes de ajudar os outros, a kodia precisa estar em harmonia com seu próprio jin, nesse sentido, ela é a primeira a entrar em transe.
O Zaar egípcio é normalmente feito num quarto amplo com um altar. Em qualquer país é importante que o espaço de uso doméstico seja separado do espaço sagrado, ou do lugar de sacrifício. O altar é coberto com um pano branco e empilhado de castanhas e frutas secas. A Kodia e seus músicos ocupam um lado do quarto, e os participantes o resto dele. Os convidados devem contribuir com uma quantia em dinheiro, de acordo com sua posição. Ter uma cerimônia de Zaar pode ser muito lucrativo, mas entende-se que a líder é alguém a quem as pessoas podem recorrer em tempos de necessidade – assim o Zaar serve também como uma sociedade solidária na qual os membros tanto dão como recebem ajuda.
A pessoa para quem o Zaar é preparado pode vestir-se de branco, geralmente uma galabiya masculina, ou saia. Ela usa henna nas mãos e corpo, e kohl nos olhos. Ela também pode ser fortemente perfumada, assim como os convidados. Os instrumentos musicais usados são o tar, um tipo de pandeiro, e a tabla. O número de “ajudantes” vai de 3 a 6; eles dão o apoio rítmico. Durante as cerimônias, os vários espíritos são invocados por sua própria batida de tambor característica.
O Zaar, por fim, não é um “exorcismo”, como geralmente se descreve, porque o espírito é acomodado e conciliado; ele não é exorcizado; ao paciente é aconselhado ser continuamente atencioso com seus espíritos, fazer as tarefas diárias que eles requerem e fugir de emoções negativas. Falhar nisso pode resultar numa recaída.
Esse é um ritual que aplica dança como caminho para o estado de transe. Nele é possível identificar a presença das religiões africanas tradicionais e, também, resquícios de religiosidades e maneiras de devoção mais antigas que remontam aos gregos e egípcios de antes de Cristo. Assim, embora o Egito seja um país predominantemente muçulmano, algumas práticas cotidianas nos mostram que a devoção e as crenças das pessoas passam por diversas esferas culturais.
Referência
MAKRIS. Changing Masters: Spirit Possession and Identity Construction among the Descendants of Slaves in the Sudan. Northwestern University Press: Evanston, 2000.
O post de hoje é especial para apresentar a publicação da pesquisa de doutorado da Camilla! Os usos do passado é o assunto principal, confira a seguir o resumo do trabalho. Além disso, você ainda pode baixar a tese completa em: http://www.prppg.ufpr.br/site/ppghis/egressos/
O objetivo principal desta tese é pensar sobre a relação entre presente e passado a partir do estudo das ânforas panatenaicas e de outras cerâmicas do universo panatenaico expostas no Museu Arqueológico Nacional de Atenas. Estudam-se quinze objetos datados entre 575 e 359 a.C. provenientes, em sua maioria, dos jogos do Festival Panateneias, evento cívico e religioso que ocorria em Atenas em homenagem à deusa Políade e em cujas competições atléticas os vencedores ganhavam ânforas contendo o azeite sagrado das oliveiras de Atena. Com essa cultura material pretende-se construir um conhecimento sobre o mundo antigo fundamentado em um imaginário social em torno da iconografia e do ideal do atleta. Além disso, tem-se por intuito outra compreensão a respeito da contemporaneidade baseada na concepção da exposição e em questões de identidade. Para tanto, adota-se uma abordagem interdisciplinar entre História, Arqueologia e Estudos Visuais, inserindo-se em um ponto de vista histórico-interpretativo de investigação dos artefatos e em uma perspectiva contextualista de interpretação da imagem.
Palavras-chave: Vasos Gregos. Festival das Panateneias. Museu Arqueológico Nacional de Atenas.
Na antiga Atenas ocorriam
diferentes festas religiosas e cívicas, uma delas era o Festival das
Panateneias em homenagem a deusa políade. Era uma celebração que abrangia jogos
competitivos, procissão, sacrifícios e banquete. Nos jogos ocorriam diversas
provas como as corridas de curta e longa distância, as lutas, os lançamentos de
disco e de dardo e as corridas de bigas. Em muitas dessas competições o prêmio
dos vencedores era o azeite sagrado das oliveiras de Atena, entregue em ânforas
de cerâmica com as cenas dos jogos de um lado e da deusa Atena Promachos do
outro.
Neste post um dos
objetivos é notar que nas figurações atléticas, a distinção entre algumas
provas é feita pelo gesto. Por exemplo: a distinção entre corridas de curta
(figura 1) e longa distância (figura 2) é feita pela posição dos braços e das mãos
e a distinção entre o pancrácio (figura 3) e o boxe (figura 4) passa pelo tipo
de envolvimento entre os lutadores. Sendo o pancrácio uma luta de maior contato
físico, diferente do boxe.
Figura 1: Ânfora Panatenaica, cerca de 500 a.C.
Fonte: Museu do Louvre, foto de Camilla Martins.
Figura 2: Ânfora Panatenaica, 333-332 a.C. (arconte Nikrokrates).
Fonte: Museu Britânico, coleção online.
Figura 3: Ânfora Panatenaica, 365-360 a.C.
Fonte: Museu Britânico, coleção online.
Figura 4: Ânfora Panatenaica, 336 a.C. ou mais antigo.
Fonte: Museu Britânico, coleção online.
Shear, ao comentar a ocorrência de tais provas nas ânforas panatenaicas, afirma que a chave para identificar o evento é a representação dos braços e das mãos dos corredores. Os braços daqueles de curta distância ficavam afastados do corpo, enquanto as mãos estavam muitas vezes na altura da cabeça e sempre estendidas. E os de longa distância mantinham seus braços baixos e próximos de seu corpo, com as suas mãos fechadas em punhos (SHEAR, 2012, p. 81).
De maneira geral, o elemento
marcante em todas essas imagens é o corpo masculino nu. Ele expressa os valores
de homens livres, apontando a força, a agilidade, o vigor, o potencial
guerreiro desses corpos e, também, o potencial de vitória. São todas qualidades
que enaltecem a honra e mostram que podem aproximar os atletas do divino, pois
durante a competição são heróis, são como deuses, sendo às vezes guiados por
divindades (MARTINS, 2014, p. 68) – como é o caso de imagens nas
quais a deusa Vitória aparece junto dos esportistas, podendo ser o juiz em
pessoa ou a protetora de algum deles (figura 4).
Pode-se
pensar que esses valores marcados no corpo do atleta expressam, ainda, a
vontade de serem lembrados. Afinal, na cultura grega um homem somente teria
fama, no sentido de honra, caso de alguma maneira ficasse na memória das demais
pessoas, o que é uma espécie de ser imortal e eterno. Enfatiza-se: na memória
dos outros, por isso, a cultura física dos helenos visaria uma relação com o
mundo, com as demais pessoas (MARTINS, 2014, p. 68).
Por fim, o outro objetivo deste
post é perceber que nas cenas de lutas e lançamento de dardo os homens possuem
músculos mais fortes e peso um pouco mais avantajado, enquanto nas provas de
corrida eles possuem músculos definidos, mas são mais esbeltos e magros. Isso
faz pensar na provável diferença alimentar entre eles e, também, na diferença
entre os treinos. Apesar de ambos estarem inseridos em uma cultura física que
valorizava o belo e o jovem, possuíam maneiras diversas de se relacionar com essa
cultura, cuidados de si distintos, que mostram uma ação, pois toda a
alimentação e atividade física são no sentido de individualizar o atleta agindo
livremente no mundo. Segundo Duarte (2010, p. 106)
os exercícios ascéticos da
Antiguidade nada mais eram do que diversas formas de ação do indivíduo sobre si
mesmo, por meio das quais ele visava governar-se ao regrar e determinar sua
dieta, suas relações sexuais, suas amizades e seu próprio corpo. Encontram-se
aí o que Foucault denominou as ‘práticas de si’ ou ‘o cuidado de si’,
comportamentos que não constituíam um sistema de prescrições ou proibições
morais universais, mas apenas um conjunto de regras impostas a si mesmo, as
quais determinavam certo estilo de vida.
De forma geral, Foucault
mostra a possibilidade do passado como o lugar de uma experiência distinta da
do presente e também autônoma, construída por práticas de liberdade. Além
disso, rompe com a ideia de tradição e de progresso positivo, linear. Uma
interpretação para essa cultura física, nesse sentido, são as práticas de si,
as quais Rago (2009) explica serem formadas com a construção de si a partir de
códigos de ética e de práticas de liberdade.
Conceitos que permitem pensar sobre as maneiras de se educar o corpo, isso em um mundo onde a estética corporal e a própria vida estão no discurso do capital e na mídia; apontando para um mundo de beleza, de perfeição e de harmonia. Nessa reflexão, o momento atual é “muito diferente da experiência do cuidado de si do paganismo, que em suas diferentes modalidades, não consiste em uma atividade solitária, não se destina a separar o indivíduo da sociedade, mas supõe as relações sociais, pois ocorre nos marcos da vida social e comunitária.” (RAGO, 2009, p. 262).
Assim, defende-se que o atleta no espaço público dos jogos mediante sua dietética, sua cultura física e seu corpo nu, estiliza, individualiza, sua ação segundo critérios que lhe permitem manter seus valores de honra e de glória vivos na memória dos demais.
Bibliografia BRITISH MUSEUM. Collection Online. Disponível em: <http://www.britishmuseum.org/research/collection_online/search.aspx> Acesso em: 08/08/2018. DUARTE, André. Vidas em Risco: crítica do presente em Heidegger, Arendt e Foucault. São Paulo: Forense Universitária, 2010. MARTINS, Camilla. A Iconografia dos Vasos Panatenaicos de Atenas entre 566 A.C. e 320 A.C. 136p. Dissertação (Pós-graduação em História). Universidade Federal do Paraná. SHEAR, Julia. The tyrannicides, their cult and the Panathenaia: a note. The Journal of Hellenic Studies, vol. 132, p. 107-119, 2012. RAGO, Margareth. Dizer sim à existência. In: RAGO, Margareth; LARROSA, Jorge (Org.). Para uma vida não-fascista. Belo Horizonte: Autêntica, 2009, p.253-265
Glaydson José da Silva é historiador e professor da Universidade Federal
de São Paulo; seu livro História Antiga e
usos do Passado. Um estudo de apropriações da Antiguidade sob o regime de Vichy
(1940-1944) é uma versão revisada de sua tese de doutorado na qual analisa como
a modernidade pode usar o passado.
O assunto geral é o regime de Vichy e o objeto de análise o passado
gaulês, romano e galo-romano usado para justificar a dominação alemã e o colaboracionismo
francês com a Alemanha na Segunda Guerra Mundial. As fontes são materiais da
época, como livros acadêmicos, livros de vulgarização científica, manuais de
História e de Arqueologia, jornais, revistas, discursos, textos oficiais,
correspondências, cartazes, moedas e outros.
Resumindo, o texto discute as noções de herança e de legado a fim de
explicar como se constituem os mitos fundadores, os quais perpetuam valores e
imagens da vida nacional, com o objetivo de criar identidades pelo uso da ideia
de permanência. Além disso, aborda como a História e a Arqueologia assumem um
papel importante nesse contexto, pois estão a serviço do Estado e permitem qual
tipo de memória se pode (re)construir – uma tradição de
apropriação do passado em prol do governo com dimensões gigantescas nos séculos
XIX e XX, principalmente durante as duas grandes guerras.
A obra trata, em especial, do caso francês a partir do nascimento do
herói Vercingetórix na escrita da História francesa, desde o fim da Revolução
de 1789 até a Segunda Guerra Mundial. Em síntese, reflete sobre como na França
a disciplina histórica está atrelada à memórias construídas durante a
elaboração da identidade nacional e, também, constitui-se em uma História
mitológica – afinal, cria mitos de origem – encontrada principalmente na
escola, espaço ideal de divulgação e popularização, e tendo na política sua
primeira finalidade já que são controladas por discursos desse gênero.
Já atualmente, como se pode ler no livro, esse mito gaulês continua sendo
veementemente defendido pelo partido de extrema direita F.N. A sua juventude
nacionalista e racista, um exemplo, orgulha-se em exaltar suas origens gaulesas
na internet, em camisetas, prospectos, letras de músicas e outros. Sendo que
esse uso feito pelo partido do passado ainda é pouco estudado.
Com isso, a pergunta de conclusão do texto é: qual lugar a antiguidade ocupa em nossas sociedades? Questão que permite pensar sobre o ofício do historiador, principalmente o do mundo antigo, e se encaixa nas recentes discussões sobre o presentismo da História. Enfim, a importância de indagar acerca desse lugar permite notar a utilização da História a serviço de certa lógica justificadora e legitimadora de questões identitárias, nacionais, raciais e políticas.
Referências
História Antiga e usos do Passado. Um estudo de apropriações da Antiguidade sob o regime de Vichy (1940-1944). São Paulo: Annablume; FAPESP, 2007.
Templo de Atena Polias em Atenas na Grécia (Foto: Camilla Miranda Martins)
A religião grega antiga não conhecia nenhum tipo de revelação, não
possuía dogmas ou livros sagrados, muito menos messias. Por não ter um caráter
dogmático acabava inferindo em uma série de particularismos e, portanto, não
podemos falar em uma religião grega,
mas em cultos gregos, no plural. Contudo, existia uma cultura e uma língua
gregas que delimitavam local e temporalmente a noção do que se entende por
religiosidade ou politeísmo grego comuns. E isso era expresso na tradição das
narrativas (mytois) feitas para
conservar e transmitir os saberes convencionais.
De acordo com Pedro Paulo Funari, grande parte da religiosidade grega
conhecida foi a desenvolvida na polis
e nos jogos olímpicos, a partir de 776 a.C., os quais marcaram presença como base
cultural dos helenos.[1]
Acerca dessa religião cívica, Vernant nos explica que até o período arcaico a
esfera do sagrado, no que diz respeito ao seu espaço físico na vida das
pessoas, encontrava-se em ambientes privados como os altares domésticos.
Contudo, com o desenvolvimento das cidades edificou-se o templo, onde o deus residia
por meio de sua estátua – o templo era (diferentemente dos altares domésticos)
público e comum a todos os cidadãos.[2]
Com isso cada cidade teria passado a ter sua tradição religiosa e o gênero
literário teria se tornado autônomo, promovendo uma literatura épica a qual
recolhia na escrita o que era transmitido pela tradição. Vale ressaltar que a
literatura no período Clássico, séculos VI a IV a.C., não era feita para ser
lida desacompanhada, propiciando as narrativas um caráter estético, político e
social, aproximando os vínculos entre religião e polis.[3]
O culto aos heróis também era uma característica da religião cívica, pois
estava associado a um lugar preciso como um túmulo com o corpo do herói
(acreditava-se que o corpo estava ali; às vezes mantinha-se o lugar em sigilo
porque de seu resguardo dependia a integridade da polis, e outras vezes estavam no centro da cidade para lembrar seu
lendário fundador). O prestígio dessa figura era sinal de honra; os heróis
representavam símbolos de glória e serviam como modelos de virtude para os
cidadãos. Eles eram semideuses, muitas vezes filhos de um deus com um humano,
eram homens que nasceram e morreram, tinham qualidades como força e beleza
maiores que o comum e viveram em
uma Era já extinta – não existiam e nem existiriam mais, mas
permaneciam vivos na memória dos gregos.
Concluindo, tal aproximação do religioso com o social, entende Vernant, possuía duas consequências: a primeira é que o indivíduo não tinha posição central no culto, participava dele como representante do seu estatuto social – phrátriai da qual era membro; a segunda é que tal relação religioso-social acabava por aproximar também religioso e político, pois as atividades da ágora (assembleia) organizavam-se de acordo com as festas em honra aos deuses.
Camilla Miranda Martins
Referências:
[1] FUNARI, P.P.A. Gregos. In: (org.). As Religiões que o mundo esqueceu. São Paulo: Editora Contexto, 2009, p. 41-51.
[2]
VERNANT, J. Mito e Religião na Grécia
Antiga. Campinas SP: Papirus, 1992, p. 40.
[3]
VERNANT, J. Fronteiras do Mito. In: FUNARI, Pedro. Repensando o Mundo Antigo: Jean Pierre Vernant e Richard Hingle, Campinas/SP:
IFCH/UNICAMP, 2002, pp. 13-14.