A construção de masculinidade no Brasil a partir dos clássicos no IHGB

Revista número 55 do IHGB

Cerca de 1,3 milhão de mulheres são agredidas no Brasil por ano, de acordo com dados do suplemento de vitimização da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad). Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas pra os Direitos Humanos (ACNUDH), o Brasil ocupa o 5º lugar no ranking mundial de Feminicídio.

Esses dados alarmantes indicam uma problemática nas relações de poder, em que as mulheres são consideradas como inferiores e, por isso, descartáveis. Os homens, por sua vez, são o símbolo dessa violência. Muitas das vítimas de feminicídio já recebiam ameaças ou eram constantemente agredidas por seus companheiros e a maioria dos crimes desse gênero foi cometida por namorados e maridos das vítimas.

Essa problemática é resultado de uma construção cultural que afirma que os homens devem ser violentos, fortes, não podem chorar ou demonstrar emoções. Porém, essa não é a totalidade da possibilidade do que é ser homem, e sim uma produção discursiva. Outras possibilidades podem existir.

Na virada do século XIX para o século XX, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), em suas revistas de publicação semestral, construíam aspectos da masculinidade: o membro do Instituto e orador Barão Homem de Mello, afirma que:

“e a verdade transparece á sombra de mais de um conceito dos grandes espíritos da Grecia: o homem nasceu para a sociedad, o destino da humanidade é para um império único, nao há nada mais horrendo do que a injustiça armada e, disse Aristoteles, que é isto senão a paz internacional, pela organização do império humano? […] Platao e Aristoteles combatem, enfim, a disciplina de Lycurgo, porque se basea, sobre o principio exclusivo da educação para guerra. A bravura militar nao é a primeira virtude do cidadão; a guerra, de cidade contra cidade conduz á guerra de aldeia contra aldeia e á guerra de família contra família; á guerra, enfim, dentro do próprio coração do homem. […]” [1]

A guerra, então, é algo necessário para acabar com a chance da barbárie destruir a civilização. Porém a guerra injusta não é algo a ser valorizado, como vemos em Mello. A masculinidade a ser criada, a ideia de cidadania a ser criada, não deve ser permeada de violências sem justificativa, de uma exibição da força pela força. A identidade do brasileiro, assim como a grega, deve ser voltada para a sociedade, para a paz.            

Dessa forma, vemos uma contraposição desse discurso que critica a violência pela violência em relação com a ideia de um homem raivoso e assassino. Com isso, visamos afirmar que as maneiras e as relações que existem entre o feminino e o masculino são construídas. Ao criar-se a ideia de que o homem deve ser viril, não pode chorar, não pode demonstrar afeto, criamos uma sociedade mais violenta. Outras propostas de construções de masculinidade apareceram, e por isso não precisamos aceitar a de nossa atualidade como a verdade imutável. Ao entendermos a masculinidade como algo construído e histórico, podemos questionar a nossa atualidade e apresentar a possibilidade de transformação para outras formas de ver a masculinidade.


[1] Revista do IHGB, número 74, publicada em 1911, página 552.

  • Mariana Fujikawa

A tradição clássica e o Brasil

Lançado em 2008, pela editora Fortium, o livro “A tradição clássica e o Brasil” conta com a colaboração de diferentes autores, dentre eles a Doutora Renata Senna Garraffoni e o Doutor Pedro Paulo Funari. Organizado em subtemas por André Leonardo Chevitarese (UFRJ), Gabriele Cornelli (UnB) e Maria Aparecida de Oliveira Silva (USP), tem como propósito de pormenorizar aos leitores, como a Antiguidade Clássica tem marcado as mais diversas instituições governamentais e esferas sócio-culturais da contemporaneidade, pela presença e usualidade, de forma agradável e cativante.

Dividido em dois blocos complementares, o exemplar expõe em sua primeira parte como os clássicos tangem as áreas de ensino no Brasil. No decorrer da edição, a História é apresentada não só como horizonte de pesquisa, mas também como matéria de ensino, através da concepção de livros didáticos, até a abordagem historiográfica nas universidades, convidando a uma leitura crítica, enquanto alcança questões substanciais dentro do campo da história-disciplina e da memória, contestando a repetitiva caracterização dos antigos como corpos sociais coesos e harmoniosos, credores de proeminência em relação as demais culturas.

Já no que concerne a tradição clássica no âmbito da sociedade, a segunda seção disserta quanto a inclinação dos escritores para relatar a história ateniense, consectário de uma projeção de conceitos idealizados, pautados nas copiosas fontes materiais e de como esse cenário influenciou, de certo modo, uma historiografia escrita por brancos e destinada para brancos, ou da elite para a elite. A distinção ultrapassa as fronteiras raciais e atinge as estruturas sociais, atributo da consequente inexistência de indivíduos que sejam protagonistas de sua própria História.

Dessa maneira, a obra finda com as incontáveis vias pelas quais os temas clássicos alcançam múltiplos lugares nas civilizações existentes, começando pelo campo do conhecimento e daquilo que conhecemos através das representações, adentrando o imaginário dos estudiosos e das futuras gerações, sem deixar de lado suas complexidades, uma inesgotável fonte de indagação e de análises.

Referências
CHEVITARESE, André L., CORNELLI, Gabriele., SILVA, Maria A.O. (Orgs.). A tradição clássica e o Brasil. Brasília: Editora Fortium, 2008.

  • Letícia Bail

Referência aos clássicos na cultura pop: o caso Alt-J

Fonte: Youtube

Em 09 de julho de 2012, a banda indie britânica Alt-J lançou o videoclipe para seu single “Tessellate”. Dirigido por Alex Southam, o clipe se propõe a realizar uma subversão no afresco “Escola de Atenas” do pintor renascentista italiano Rafael, representando-a como um paraíso do gangster moderno.

Fonte: Wikipedia Commons.

A referência ao afresco de Rafael é ainda mais explicitada na sua presença em uma camiseta usada por um dos atores e nas poses adotadas pelas figuras centrais: o homem apontado para o céu como Platão e a mulher com sua mão paralela ao chão como Aristóteles.

Fonte: Youtube.
Fonte: Youtube.

Uma das principais características do Renascimento italiano é a retomada dos clássicos, sendo os tratados e pensamentos dos filósofos greco-romanos muito valorizados. Há uma grande retomada no estudo das artes e das experimentações clássicas, além de uma grande dedicação ao estudo de conteúdos como gramática, retórica, história, poesia, filosofia, latim e grego. O afresco original, pintado entre 1509 e 1511 por Rafael no Vaticano, é típico desse movimento e busca fazer uma representação da filosofia. A obra está longe de ser considerada um retrato fiel, pois, além do grande intervalo de tempo entre sua produção e o tema que representa, os filósofos retratados são de períodos distintos e muitos não eram nem mesmo atenienses.

Segundo o classicista Glenn W. Most, a maneira como a filosofia e as artes liberais são representadas na “Escola de Atenas” é uma ruptura com a tradição do começo do século XVI. Isso se dá porque, ao invés de fazer representações alegóricas femininas, Rafael decide pintar 58 figuras masculinas. Essas figuras se distribuem em um espaço arquitetônico de luxo sóbrio e realizam ações esperadas de filósofos: leitura, discussão, ensino, reflexão e contemplação. É justamente esse aspecto que é subvertido em maior extensão no clipe, pois as ações realizadas são normalmente consideradas extremos daquelas presentes no afresco: dança, flerte, brigas, consumo de bebidas alcóolicas e cigarro, entre outros.

Existem poucos pronunciamentos oficiais da banda sobre o significado do clipe, além de que seu objetivo tenha sido causar um choque no espectador. Esse objetivo foi certamente atingido e é observado nas diversas teorias elaboradas pelos fãs da banda para interpretar o vídeo. A sugestão do paralelo entre filósofos gregos e gangsters modernos pode ser vista como uma crítica aos valores tradicionais de erudição, mas também pode ser considerada uma denúncia das desigualdades sociais ao contrastar a arquitetura do afresco com personagens de classes econômicas mais baixas do século XXI. Independentemente da interpretação, a opção de produzir algo polêmico pela subversão de representações de clássicos nos leva a pensar sobre o papel que elas ocupam no imaginário popular, mesmo tendo sido construídas muito posteriormente – como é o caso do afresco de Rafael, produzido no século XVI.

  • Letícia Schevisbisky de Souza

Referências:

MOST, Glenn W. “Reading Raphael: ‘The School of Athens’ and Its Pre-Text. In: Critical Inquiry, vol. 23, no. 1. University of Chicago Press, 1996, pp. 145-182.

Clipe da música