É com grande alegria que anunciamos nossa terceira coletânea de trabalhos – resultado direto dos eixos temáticos desenvolvidos por nosso Grupo de Estudos, História Antiga e Conexões com o Presente. Neste volume de textos, produzidos ao longo do segundo semestre de 2021, buscamos trabalhar a presença da Antiguidade na música. Portanto, nossos principais objetivos, além de reunir toda a nossa produção 2/2021 em um único material, é elaborar uma forma interativa de pensar a antiguidade a partir das mídias digitais. Para isso, juntamente dos escritos apresentados, criamos uma playlist no Youtube e no Spotify, facilitando ouvir as canções citadas durante a leitura dos textos. Para acessá-la, basta baixar nosso material e escanear os QrCodes disponíveis ou entrar em nosso canal do Youtube!
O Heavy Metal surgiu na década de 1970 e consolidou-se na década de 1980, tornando-se rapidamente um fenômeno mundial. O som rápido e pesado das guitarras conquistou seu espaço principalmente entre os jovens, que identificavam-se com a sonoridade, a estética ligada ao estilo e também às letras das músicas. Um dos temas recorrentes nestas letras é a Antiguidade Clássica: de Alexander, the Great, lançada em 1986 pelos britânicos do Iron Maiden até Caligula, lançada em 2016 pela banda alemã Sodom, podemos identificar várias bandas, de diferentes vertentes dentro do Metal, que escolhem a Antiguidade Clássica como algo relevante para tratar dentro de suas músicas e álbuns.
Assim sendo, o que a utilização do passado clássico nos diz sobre o Heavy Metal enquanto gênero musical e os Estudos Clássicos? Considero necessário, de início, retomar a origem histórica do Heavy Metal – aqui, menos na concepção de qual banda realmente criou o Heavy Metal, e mais em sua estética e em sua formação enquanto uma subcultura. Um dos pontos principais do Heavy Metal é sua crítica a um modelo de sociedade pautado em valores cristãos. A associação com o ocultismo gerou, inclusive, certo pânico moral sobre o estilo e suas vertentes, especialmente a partir de sua popularização na década de 1980 – os fãs de metal eram vistos de maneira negativa, considerados rebeldes que cultuavam Satã e estavam prontos a cometer qualquer tipo de crime em busca de prazeres terrenos.
Além destas questões, o Heavy Metal surge como um estilo produzido por homens brancos de classe média baixa – o Black Sabbath, considerada por muitos como uma das bandas definidoras do gênero, surge na cidade operária de Birmingham. A potência sonora e lírica pode ser entendida também como uma forma de constituição de uma masculinidade específica que é, em certa medida, subversiva, mas que também se utiliza de diferentes elementos para reforçar aspectos específicos da masculinidade, como a força, a honra e a violência. Estes dois aspectos convergem, em alguma medida, nas leituras realizadas pelas bandas sobre Roma Antiga.
Em uma análise inicial a partir da plataforma Metal Archives, 65 bandas atendem ao critério de tratar especificamente sobre a Antiguidade Clássica. Destas, cerca de 50% lançaram álbuns nos últimos anos, o que demonstra a relevância da temática e sua popularização, principalmente a partir da internet. Três eixos principais foram observados na pesquisa no que diz respeito à utilização da temática sobre Roma Antiga: a retomada da mitologia antiga e do anti-cristianismo; a ênfase nas questões políticas; o uso do latim. Estas leituras são, na maioria das vezes, mediadas principalmente pelo cinema. Nesse sentido, o que é compreendido como relevante na Antiguidade Clássica passa primeiramente por uma seleção cinematográfica que populariza algo e apresenta para o grande público, e posteriormente é readaptado dentro do Heavy Metal.
Isso fica evidente no número elevado de músicas referentes a Spartacus e Caligula – cerca de 100 entre todas as bandas da plataforma –, personagens eternizados no cinema e dotados de características relevantes para a estética do Heavy Metal: o imperador romano pela violência, por seu autoritarismo e pela suposta libertinagem durante seu governo; Spartacus, por sua vez, tem espaço garantido também por sua violência, mas pela honra de seus atos e por sua insurgência contra um grupo de privilegiados. Algumas menções são feitas a Júlio César, entendido também como um homem de poder que se volta contra os privilegiados – o Senado. O álbum da banda italiana Ade, Rise of the Empire, lançado em 2019, ressalta a constituição do Império Romano e salienta a imagem de César como aquele que arquitetou o Império, sendo considerado inclusive seu primeiro imperador na letra de uma das músicas.
A crítica ao cristianismo, ou aos valores cristãos considerados comuns na sociedade contemporânea, é observada em bandas de estilos mais extremos, como o Black Metal e o Death Metal, que colocam como ponto positivo tanto a existência de um mundo pagão pré-cristão como a própria perseguição aos cristãos. A banda canadense Ex Deo, em seu álbum Caligvla, de 2012, cita a ascensão do cristianismo como algo negativo ao Império:
Plague… the Christian plague Peste… a peste cristã
Invades the empire and threatens the sun Invade o Império e ameaça o sol
Insults to the pagan gods Insultos aos deuses pagãos Ex Deo – Burned to Serve as Nocturnal Light
A partir desta análise inicial, os dois aspectos aqui analisados são convergentes: a masculinidade buscada pelo estilo musical é baseada em ideais reforçados pelas leituras da Roma Antiga. Violência, honra, poder e força são algumas destas características, que estão ligadas a uma rejeição do cristianismo e de alguns de seus preceitos, considerados negativos diante do passado pagão romano – este sim, algo que deve ser retomado.
A utilização da Roma Antiga se dá como forma de reforçar temáticas caras ao próprio Heavy Metal, como uma concepção específica de masculinidade e a crítica ao cristianismo. Esta recepção do passado, mediada por outras mídias e complexa em sua atribuição (visual pela capa dos álbuns, textual pelas letras e musical pela sonoridade) cria também novos significados sobre esta Roma do passado, que serão apreendidos de diferentes formas pelos fãs da música. Neste complexo jogo de sentidos, leituras e significados, é possível observar a centralidade do passado romano como algo positivo que precisa ser rememorado e, até certo ponto, celebrado. Entretanto, é certo que, para estas leituras de Roma, há pouco a se falar dos trabalhadores, das mulheres, dos escravizados e de vários outros grupos: a narrativa de grandes homens e grandes feitos é algo comum. Isto pode significar, também, um sintoma específico da própria constituição da masculinidade de grupos jovens no século XXI e da busca por semelhanças de um passado considerado ideal.
Para acompanhar todas estas discussões, compilei uma playlist com bandas de Metal que fazem algum tipo de referência ao mundo antigo. Espero que gostem!
Referências:
BAYER, Gerd (Ed.). Heavy metal music in Britain. Ashgate Publishing, Ltd., 2009.
FLETCHER, Kristopher F. B.; OSMAN, Umurhan. (Eds.). Classical Antiquity in Heavy Metal Music. London, New York: Bloomsbury Academic, 2019.
FLETCHER, Kristopher. Nationalism and the Reception of Greco-Roman-Antiquity in Heavy Metal. 2018.
Imagem de divulgação do Instagram @antigaeconexoes
Ao falar da antiguidade grega existe sempre um problema de conexões de como traduzir os temas dos mitos para uma audiência do século 21. Hades é um dos casos mais peculiares sendo o nome de ambos o deus do submundo grego e do próprio submundo, no curta-metragem de animação produzido pela Disney: A deusa da primavera (1939) o deus dos mortos aparece vestindo roupas vermelhas e chifres tendo uma aparência que remete as representações de satã, além do que o submundo aparece com vastos campos de fogo, criaturas que parecem demônios caricaturados sendo algo que remete muito ao inferno cristão. A representação mais famosa da Disney de Hades aparece porém em Hércules(1997) que apesar de usar a versão romana de seu nome uma vez que a escrita do semideus em grego era: Héracles é baseado na mitologia grega, o deus Hades é o principal vilão do filme e aparece como traiçoeiro e maquiavélico em seu papel como antagonista que visa usurpar o papel de rei dos deuses de seu irmão Zeus, a autenticidade do filme com a mitologia grega é questionável uma vez que Zeus mesmo aparece como um fiel e devoto pai de família, algo que qualquer pessoa que já leu algum mito grego acharia absurdo. Apesar de o filme não fazer explícitas associações entre o deus Hades e o diabo cristão, o filme ainda faz aproximações, em especial com Agonia e Pânico os lacaios do deus que novamente remetem a demônios cristãos caricaturados.
A associação de Hades com o diabo é algo comum e não é exclusivo nem da Disney nem do cinema. O mesmo ocorre nos videogames, por exemplo, na série God of War o deus é uma figura colossal, monstruosa e deformada com um elmo que apresenta chifres e um submundo encoberto por chamas, o Jogo Hades (2020) não difere dessa conexão onde em especial o segundo mundo Asphodel apresenta rios de lava, é descrito como “fedendo a enxofre”, apesar de o inferno ter diversas interpretações a discrição: “Fogo e enxofre” encontrada em especial no livro do apocalipse é a mais comum. No videogame Hades é então possível ver que apesar das diversas figuras gregas a aproximação do submundo com o inferno é perceptível, essa fusão que não escapou aos desenvolvedores, Darren Korb o compositor das músicas do jogo e dublador de Zagreus o protagonista do jogo disse “I wanted Hades to have a metal rock component because it’s in hell. It’s just right there for the taking” o que em uma tradução de minha autoria ficaria algo como: “Eu queria que Hades(o jogo) tivesse um componente de rock metal porque se passa no inferno. Faz todo sentido” chegamos então ao tema desse segmento a música e aqui vemos uma interessantíssima conexão a do inferno com o metal.
Tal conexão é pouquíssimo surpreendente, afinal o rock metal normalmente apresenta um profundo teor anticristão e em especial anticlerical, e o que pode ser mais anticlerical do que o diabo e o inferno? A antiguidade e em especial a mitologia também são elementos do metal em especial do Black Metal, Christodoulos Apergis discorre sobre isso no terceiro capítulo de Classical antiquity in heavy metal music, capítulo esse intitulado “Screaming Ancient Greek Hymns: The Case of Kawir and the Greek Black Metal Scene” explica que a associação com a mitologia e com os rituais pagãos gregos é necessário lembrar que a música tinha papel central nas praticas religiosas da antiga Grécia, os hymms referidos eram canções feitas para exaltar a glória dos heróis e deuses da mitologia. O Black metal, que comumente faz referências satanistas, torna mais aparente que ao tomar inspiração da mitologia grega tem a intenção de o fazer a partir da rejeição do cristianismo ao exaltar os rituais pagãos, e nesse ponto a relação do metal com do paganismo começa a fazer sentido se levadas pelo teor do anticristianismo encontrado no Black Metal.
Até onde sabemos Darren Korb não teve a intenção de inserir um conteúdo explicitamente anticristão ao produzir a trilha sonora de Hades, porém ao o fazer ele bebe de todas essas questões e nesse ponto quando se ouve uma lira sendo harmonizada com uma guitarra elétrica após passar a frustração de morrer pelas mãos do minotauro pela centésima vez, possamos pensar em como nossas visões de passado e antiguidade também são permeadas por questões presentes, como as figuras mitológicas aparecem para nós e como a música possibilita fazer sentido a todas essas relações. E, ao ver que as associações de Hades com o diabo e do submundo com o inferno muito longe de naturais estão em um âmbito da recepção e do uso dos clássicos, é também possível entender nosso papel na construção dos sentidos que damos as coisas que parecem ser tão distantes.
Referências
APERGIS, Christodoulos. Screaming Ancient Greek Hymns: The Case of Kawir and the Greek Black Metal Scene. In: FLETCHER, K. F. B.; UMURHAN, Osman (Edição). Classical Antiquity in Heavy Metal Music. Londres: Bloomsbury Publishing, 2019. p. 77 – 96.
Imagem de divulgação no Instagram @antigaeconexoes
Olá, pessoal! Estamos preparando as próximas publicações a partir de um novo eixo temático, a recepção da Antiguidade na Música. Dentro deste eixo, escolhemos alguns temas específicos: os usos de espaços da Antiguidade como palco para performances musicais contemporâneas; músicas que pensam a Antiguidade como temática principal; músicas que utilizam a Antiguidade de maneira mais pontual, ou seja, produzindo alusões contemporâneas a partir do que se entende sobre a Antiguidade.
A música era considerada uma das musas durante a Antiguidade. Seu nome, Euterpe, significa deleite, o que já demonstra a relação próxima entre a Música, os sentidos humanos e o prazer. Ao longo da História, a Música ocupou diferentes espaços nas mais diversas sociedades, e nas últimas décadas podemos observar o papel que esta arte ocupa em demonstrar problemas sociais, englobar identidades e, acima de tudo, divertir as pessoas. A relação entre as obras da Antiguidade e a Música não é algo novo, visto que óperas dos séculos XVIII e XIX vão se embasar em obras mitológicas sobre o período antigo. Este tipo de produção musical recupera a Antiguidade exatamente como uma continuidade da tradição clássica, algo comum no período de formação dos Estados Nacionais europeus e na construção de identidades. Entretanto, nosso foco será nas percepções da Antiguidade em músicas na contemporaneidade, ressaltando o caráter popular das apropriações do passado antigo. Nesse sentido, algumas questões norteiam nossas escolhas dentro deste eixo temático: como e por qual motivo a recuperação da Antiguidade na música popular contemporânea ocorre, quais elementos são recuperados, qual a relevância do tema dentro de gêneros musicais específicos, e por que os espaços da Antiguidade são utilizados?
A retomada da Antiguidade na música, seja a partir de músicas e álbuns totalmente dedicados ao tema, seja em referências mais pontuais, demonstra a atualidade destas temáticas e sua permanência na contemporaneidade. Sua utilização pode ser analisada como algo comum ao imaginário popular das últimas décadas, e a um conhecimento pelo passado que cada vez mais é mediado – muitas músicas, como analisaremos, terão como base produções cinematográficas e não as fontes diretamente da Antiguidade. As músicas que tratarão do tema de maneira mais exaustiva, como aquelas pertencentes ao Heavy Metal e suas vertentes, também produzirão uma leitura da Antiguidade que relaciona uma estética do estilo a alguns temas recorrentes nos relatos mitológicos e históricos.
Além disso, a utilização de um espaço antigo em performances contemporâneas – aqui podemos citar como exemplo mais conhecido o Live in Pompeii, do Pink Floyd – demonstra de maneira bastante expressiva a relação entre passado e presente que comumente discutimos nos estudos da recepção: a retomada de um espaço antigo é sinal de sua permanência (aqui, seja em um sentido estético ou acústico), mas também sua apropriação para algo novo, um novo tipo de experiência com a arte.
Acreditamos que este eixo pode auxiliar nas discussões sobre estas diferentes leituras que a música faz da Antiguidade, promovendo sempre esta última enquanto uma permanência interessante na contemporaneidade e mostrando esta conexão entre antigos e modernos. Esperamos que vocês gostem dos textos tanto quanto nós gostamos – e nos divertimos e conhecemos coisas novas – enquanto estávamos preparando-os. E um último informe: ainda nesse mês teremos uma live no YouTube, então fiquem ligados nas nossas redes sociais!
Referências:
FLETCHER, Kristopher F. B.; OSMAN, Umurhan. (Eds.). Classical Antiquity in Heavy Metal Music. London, New York: Bloomsbury Academic, 2019.
MOORMANN, Eric M. Pompeii’s Ashes: The Reception of the Cities Burned by the Vesuvius in Literature, Music and Drama. Berlin: De Gruyter, 2015.