Roma Antiga a partir do Heavy Metal

O Heavy Metal surgiu na década de 1970 e consolidou-se na década de 1980, tornando-se rapidamente um fenômeno mundial. O som rápido e pesado das guitarras conquistou seu espaço principalmente entre os jovens, que identificavam-se com a sonoridade, a estética ligada ao estilo e também às letras das músicas. Um dos temas recorrentes nestas letras é a Antiguidade Clássica: de Alexander, the Great, lançada em 1986 pelos britânicos do Iron Maiden até Caligula, lançada em 2016 pela banda alemã Sodom, podemos identificar várias bandas, de diferentes vertentes dentro do Metal, que escolhem a Antiguidade Clássica como algo relevante para tratar dentro de suas músicas e álbuns.

Assim sendo, o que a utilização do passado clássico nos diz sobre o Heavy Metal enquanto gênero musical e os Estudos Clássicos? Considero necessário, de início, retomar a origem histórica do Heavy Metal – aqui, menos na concepção de qual banda realmente criou o Heavy Metal, e mais em sua estética e em sua formação enquanto uma subcultura. Um dos pontos principais do Heavy Metal é sua crítica a um modelo de sociedade pautado em valores cristãos. A associação com o ocultismo gerou, inclusive, certo pânico moral sobre o estilo e suas vertentes, especialmente a partir de sua popularização na década de 1980 – os fãs de metal eram vistos de maneira negativa, considerados rebeldes que cultuavam Satã e estavam prontos a cometer qualquer tipo de crime em busca de prazeres terrenos.

Além destas questões, o Heavy Metal surge como um estilo produzido por homens brancos de classe média baixa – o Black Sabbath, considerada por muitos como uma das bandas definidoras do gênero, surge na cidade operária de Birmingham. A potência sonora e lírica pode ser entendida também como uma forma de constituição de uma masculinidade específica que é, em certa medida, subversiva, mas que também se utiliza de diferentes elementos para reforçar aspectos específicos da masculinidade, como a força, a honra e a violência. Estes dois aspectos convergem, em alguma medida, nas leituras realizadas pelas bandas sobre Roma Antiga.

Em uma análise inicial a partir da plataforma Metal Archives, 65 bandas atendem ao critério de tratar especificamente sobre a Antiguidade Clássica. Destas, cerca de 50% lançaram álbuns nos últimos anos, o que demonstra a relevância da temática e sua popularização, principalmente a partir da internet. Três eixos principais foram observados na pesquisa no que diz respeito à utilização da temática sobre Roma Antiga: a retomada da mitologia antiga e do anti-cristianismo; a ênfase nas questões políticas; o uso do latim. Estas leituras são, na maioria das vezes, mediadas principalmente pelo cinema.  Nesse sentido, o que é compreendido como relevante na Antiguidade Clássica passa primeiramente por uma seleção cinematográfica que populariza algo e apresenta para o grande público, e posteriormente é readaptado dentro do Heavy Metal.

Isso fica evidente no número elevado de músicas referentes a Spartacus e Caligula – cerca de 100 entre todas as bandas da plataforma –, personagens eternizados no cinema e dotados de características relevantes para a estética do Heavy Metal: o imperador romano pela violência, por seu autoritarismo e pela suposta libertinagem durante seu governo; Spartacus, por sua vez, tem espaço garantido também por sua violência, mas pela honra de seus atos e por sua insurgência contra um grupo de privilegiados. Algumas menções são feitas a Júlio César, entendido também como um homem de poder que se volta contra os privilegiados – o Senado. O álbum da banda italiana Ade, Rise of the Empire, lançado em 2019, ressalta a constituição do Império Romano e salienta a imagem de César como aquele que arquitetou o Império, sendo considerado inclusive seu primeiro imperador na letra de uma das músicas.

A crítica ao cristianismo, ou aos valores cristãos considerados comuns na sociedade contemporânea, é observada em bandas de estilos mais extremos, como o Black Metal e o Death Metal, que colocam como ponto positivo tanto a existência de um mundo pagão pré-cristão como a própria perseguição aos cristãos. A banda canadense Ex Deo, em seu álbum Caligvla, de 2012, cita a ascensão do cristianismo como algo negativo ao Império:

Plague… the Christian plague                                          Peste… a peste cristã

Invades the empire and threatens the sun           Invade o Império e ameaça o sol

Insults to the pagan gods                                      Insultos aos deuses pagãos
Ex Deo – Burned to Serve as Nocturnal Light

A partir desta análise inicial, os dois aspectos aqui analisados são convergentes: a masculinidade buscada pelo estilo musical é baseada em ideais reforçados pelas leituras da Roma Antiga. Violência, honra, poder e força são algumas destas características, que estão ligadas a uma rejeição do cristianismo e de alguns de seus preceitos, considerados negativos diante do passado pagão romano – este sim, algo que deve ser retomado.

A utilização da Roma Antiga se dá como forma de reforçar temáticas caras ao próprio Heavy Metal, como uma concepção específica de masculinidade e a crítica ao cristianismo. Esta recepção do passado, mediada por outras mídias e complexa em sua atribuição (visual pela capa dos álbuns, textual pelas letras e musical pela sonoridade) cria também novos significados sobre esta Roma do passado, que serão apreendidos de diferentes formas pelos fãs da música. Neste complexo jogo de sentidos, leituras e significados, é possível observar a centralidade do passado romano como algo positivo que precisa ser rememorado e, até certo ponto, celebrado.  Entretanto, é certo que, para estas leituras de Roma, há pouco a se falar dos trabalhadores, das mulheres, dos escravizados e de vários outros grupos: a narrativa de grandes homens e grandes feitos é algo comum. Isto pode significar, também, um sintoma específico da própria constituição da masculinidade de grupos jovens no século XXI e da busca por semelhanças de um passado considerado ideal.

Para acompanhar todas estas discussões, compilei uma playlist com bandas de Metal que fazem algum tipo de referência ao mundo antigo. Espero que gostem!

Referências:

BAYER, Gerd (Ed.). Heavy metal music in Britain. Ashgate Publishing, Ltd., 2009.

FLETCHER, Kristopher F. B.; OSMAN, Umurhan. (Eds.). Classical Antiquity in Heavy Metal Music. London, New York: Bloomsbury Academic, 2019.

FLETCHER, Kristopher. Nationalism and the Reception of Greco-Roman-Antiquity in Heavy Metal. 2018.

– Ingrid Cristini Kroich Frandji

Em busca da família perdida

Afresco de Terentius Neo e sua Esposa. Fonte: Museu Arqueológico de Nápoles

Certamente você, que está lendo esse texto, já ouviu em algum momento da sua vida a frase: “Na minha época existia respeito à família, não era como hoje”.

Muito possivelmente essa frase que você já ouviu foi evocada por alguém mais velho, referindo-se a um passado em que a família era uma estrutura coesa e base da formação de cidadania. Mais do que isso, a frase simboliza uma contraposição entre um presente decadente e um passado glorioso para a instituição familiar. A decadência contemporânea pode ser causada por vários motivos – o divórcio, a falta de religião, a tecnologia, a liberdade sexual – e seria base da destruição de um ideal de família perdido ao longo do tempo e que precisa ser recuperado.

O mais interessante nesse tipo de discurso é a romantização do passado, algo encontrado até mesmo no início do Império Romano. Augusto, primeiro imperador romano, reforça a imagem da família arcaica (aquela do período da Monarquia) como moralmente superior por ter uma ligação mais direta com a terra e valorizar, nesse sentido, o trabalho braçal – e não os bens materiais. Essa moralidade recaía especialmente sobre as mulheres: nesse passado mítico, as mulheres eram mais virtuosas, dedicavam-se mais à família e eram mais castas. Esse tipo de olhar, reforçado posteriormente por autores como Tácito e Juvenal, é uma crítica às mulheres da elite romana, por sua frivolidade, adultérios e busca constante pelo divórcio – ainda que este fosse uma prática comum.

De maneira próxima ao que existe na contemporaneidade, os discursos construídos por Augusto em sua retomada da família arcaica eram reflexo de um sistema moral e de relações ideais do que deveria ser a família no início do Império Romano. Essa visão, ainda que romantizada e possivelmente imprecisa, criava um imaginário sobre a família e implicava, em alguma medida, em questões concretas – como a legislação de Augusto que transformava o divórcio em procedimento formalizado a ser realizado diante de sete testemunhas. Nesse sentido, é possível perceber como a construção dos discursos míticos empreendida por Augusto foi uma reapropriação e reelaboração narrativa ainda na Antiguidade, utilizada para reforçar um tipo específico de mentalidade sobre a família. É interessante perceber, a partir disso, como a utilização do passado não é um recurso retórico recente, mas sim uma constante ao longo de variados espaços e períodos históricos.

  • Ingrid C. K. Frandji

Para saber mais:

The Augustan Reformation – http://www.womenintheancientworld.com/augustanreformation.htm

DIXON, Suzanne. The Roman Family. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1992.