As nuances modernas do Spartacus de Stanley Kubrick

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Kirk Douglas como Spartacus. Imagem: divulgação

Spartacus, dirigido por Stanley Kubrick, escrito por Dalton Trumbo e estrelado por Kirk Douglas, continua a ser um dos filmes mais aclamados pelo público e pela crítica. Lançado em 1960, tornou-se um dos maiores sucessos do gênero épico, com seis indicações ao Oscar – das quais venceu quatro. Baseado no livro homônimo de 1951 escrito por Howard Fast, Spartacus narra a história de um escravo romano em busca por liberdade. Neste texto, não pretendo tratar da relação entre os documentos antigos que tratam da revolta de Spartacus e sua representação cinematográfica. Meu objetivo aqui é analisar alguns elementos próprios da sociedade estadunidense presentes no filme, salientando o uso do mundo romano como uma forma de legitimação de questões e narrativas do século XX.

Assim como outras obras cinematográficas, Spartacus estabelece um movimento duplo na relação passado-presente: ao mesmo tempo em que constrói uma imagem do passado romano no século I antes da era comum, também traz elementos da sociedade estadunidense do século XX. Diferentes valores são codificados para as telas do cinema e, no caso específico de Spartacus, procuram legitimar sua importância a partir da relação com o passado mítico romano.

Os filmes épicos emergem no pós-1945 como o gênero ideal para demonstrar as inovações tecnológicas do cinema, ao mesmo tempo em que, enquanto uma mídia massificada, refletem vários temas recorrentes da sociedade estadunidense. A liberdade é um destes temas: enquanto elemento basilar da própria formação enquanto nação, esta é representada, em Spartacus, na relação conflituosa entre corrupção e poder.

A luta entre Spartacus e Draba é bastante significativa neste sentido. Draba, gladiador negro e mais experiente, interpretado por Woody Strode, seria o vencedor por suas habilidades. Entretanto, há um entendimento mútuo, refletido tanto nos personagens como na construção das cenas, que os dois homens, mesmo em lados opostos, não são realmente inimigos. A partir desta constatação, Draba não mata Spartacus, mas ataca Crassus e é morto no processo. Mais do que um mártir pela liberdade (a ideia do martírio messiânico é uma temática recorrente no filme), Draba é um modelo moral, evidenciando a influência do contexto de produção do filme. Draba é, acima de tudo, uma representação do protagonismo negro na luta por direitos civis no século XX. Ainda que esta visão sobre Draba possa ser considerada positiva, é importante lembrar que o personagem negro virtuoso é um motivo comum no cinema estadunidense, e sempre está atrelado a uma ideia de ensinamento ao herói branco, o que também fica evidenciado em Spartacus.

Após a morte de Draba, Spartacus reflete sobre a própria natureza de suas ações, passando a negar a violência que o faria tornar-se tal qual seus detratores – os romanos. Spartacus incentiva a organização dos gladiadores, que formariam o pilar de uma sociedade mais justa, diferente da corrupção e da violência de Roma. A solidariedade entre os menos favorecidos representada em Spartacus funciona como uma alegoria ao ideal comum de busca pela liberdade, virtude fundacional dos EUA.

Nesse sentido, a adaptação de Kubrick codifica uma visão de um sonho de liberdade americano. Spartacus, representado pelo ícone de masculinidade e selfmade man Kirk Douglas, passa por uma jornada espiritual para alcançar a liberdade diante do sacrifício, e esta liberdade é conquistada pela comoção e pela solidariedade entre os pares. Mesmo tratando de temas caros à sociedade (como a luta por direitos civis), e pendendo para uma interpretação menos conformista e mais revolucionária (Howard Fast e Dalton Trumbo foram incluídos em lista de envolvidos com o Partido Comunista), Spartacus é acima de tudo uma narrativa sobre a importância da liberdade como ideal civilizatório.

Referências:

WINKLER, Martin W (ed.). Spartacus: Film and History. Oxford: Blackwell Publishing, 2007.

  • Ingrid Frandji