As paredes da cidade: entre o muralismo e o grafite

Arte temática de Paulo Leminski com vários de seus haikais no centro de Curitiba, rua Doutor Faivre esquina com XV de Novembro. Imagem: divulgação.

Em preparação para a exposição sobre Paulo Leminski, o tema do post desta semana será sobre um elemento importante das cidades: suas paredes, muros e murais.

Em Curitiba, principalmente no centro da cidade, é possível observar diversos murais com temáticas que refletem uma visão bem tradicional do Paraná: muitos pinheiros, pinhões, gralhas-azuis e figuras realizando trabalhos braçais. Desde a primeira república, esse tipo de obra, encomendada pelos governos de estados e municípios, são reconhecidas pela historiografia da arte como uma maneira de tentar estabelecer uma identidade específica para a cidade. Os temas já anteriormente mencionados que se encontram nos murais “oficiais” presentes em Curitiba fazem referência ao Paranismo, movimento artístico que floresceu na cidade justamente com o objetivo de construir uma identidade para o Paraná, que se tornou estado independente de São Paulo em 1853. Esse movimento artístico, por mais que tenha seu momento de maior produção na primeira metade do século XX, teve um impacto permanente na arquitetura cidade. Mesmo em períodos posteriores, é possível observar elementos de origem paranista em edifícios e calçadas, além de em murais de artistas como Ida Hannemann de Campos e Poty Lazzarotto.

Entretanto, não apenas de murais encomendados pelo poder público que se constitui uma cidade. É nesse aspecto que Paulo Leminski entra na nossa discussão. Segundo o historiador Everton de Oliveira Moraes, Leminski foi uma voz contrária à visão tradicional de Curitiba – de um povo trabalhador, conservador, com muita influência de seu passado imigrante –, buscando sempre trazer à tona tensões e disputas presentes na cidade. Ainda segundo esse historiador, o artista teceu diversos esforços para incitar o experimentalismo na cidade, colocando-se como uma espécie de “herói nacional” que negava não apenas a visão tradicionalista da cidade, mas também sua construção como cidade moderna modelo. Atualmente, Leminski continua inspirando e contribuindo para a imagem de Curitiba, homenageado em diversas paredes, construções, ruas, bares e localizações turísticas.

Banner pela artista Anita Ferreira para a Casa da Memória, em celebração ao que seria o aniversário de Leminski em 2017. Imagem: divulgação.

Para conhecer um pouco mais sobre Paulo Leminski e o seu trabalho, fique de olho no blog e aguarde a exposição!

  • Letícia Schevisbisky de Souza

Li Hongbo e a arte de se repensar esculturas

Imagens: Busto de Laocoonte e busto de David, feitos pelo artista Li Hongbo. Fontes: Eli Klein Gallery e Yellowtrace.

O padrão de esculturas clássicas é muito presente no imaginário ocidental: formas humanas realistas, de mármore sólido, estão frequentemente em museus, residências e outros espaços, representando elite e riqueza. Esculturas de inspiração grega foram muito produzidas no período do Renascimento italiano, pois, por serem representações realistas e idealizadas de figuras humanas, estavam em extrema consonância com os ideais humanistas do período.

As imagens trazidas acima são réplicas de duas esculturas famosas no estilo clássico. A primeira, propriamente clássica, é uma réplica da escultura Grupo de Laocoonte, encontrada numa escavação de Roma em 1506. A segunda é uma réplica da escultura David, feita pelo escultor Renascentista Michelangelo entre 1501 e 1504.

Ao olhar as imagens colocadas acima, não deve ter passado pela sua cabeça que seriam nada além de réplicas das esculturas originais. No entanto, essas duas esculturas são mais do que o olhar inicial parece mostrar: elas são feitas com milhares de camadas de papel sobrepostas e são completamente maleáveis

Imagens: Demonstração da maleabilidade das esculturas. Fonte: Collater.al.

Li Hongbo é o artista chinês por trás dessas obras de arte, que brincam com as nossas expectativas do que uma escultura deve ser e como ela deve se comportar. O artista se fascinou pela flexibilidade natural do papel como material de base ao analisar brinquedos e lanternas tradicionais chineses. Sua paixão o levou a criar esses trabalhos extremamente complexos, sendo que para esculpir uma única cabeça podem ser necessárias mais de 5.000 camadas de papel coladas manualmente.

Imagem: Li Hongbo demonstrando a movimentação de sua escultura. Fonte: Widewalls.

Em entrevista à Reuters, o artista afirma que o seu interesse em chocar a audiência é motivado pela vontade de chamar a atenção para o papel: “As pessoas têm uma ideia fixa do que uma figura humana é… então quando você transforma a figura humana, as pessoas vão reconsiderar a natureza dos objetos e as motivações por trás da criação. É com isso que eu me importo.”

Historicamente, esse tipo de escultura é feito com o objetivo de chamar a atenção para a sua representação – um modelo ideal de figura humana. A abordagem de Li Hongbo, que desloca nosso olhar para o material com o qual ela é feita, mostra uma grande inovação que vai muito além de réplicas de esculturas clássicas. Você pode ver um pouco mais do seu trabalho e inspiração aqui. Além disso, você pode assistir a um vídeo da Schoeni Art Gallery, no qual ele explica o passo-a-passo do seu processo de criação aqui.

  • Letícia Schevisbisky de Souza

Máscaras, espadas e machado: assimilações e trocas entre poetas e artesãos em Atenas Clássica

Teatro de Dionísio em Atenas. Fonte: © Galina Mikhalishina/Shutterstock.com

O capítulo Máscaras, espadas e machado: assimilações e trocas entre poetas e artesãos em Atenas Clássica foi escrito pelos historiadores Alexandre Cerqueira Lima e Talita Nunes Silva e se encontra no livro Teatro Grego e Romano: História, Cultura e Sociedade, organizado por Ana Livia Bomfim Vieira e Claudia Beltrão da Rosa. Nesse capítulo, Lima e Silva escrevem sobre a relação entre as peças de teatro e as produções artesanais em cerâmica feitas em Atenas no período clássico. O texto é dividido em duas partes, sendo a primeira escrita por Lima e a segunda por Silva. A introdução aborda como o regime democrático em Atenas abre espaço para encenações teatrais cômicas, estabelecendo o teatro do período como a “vitrine” da pólis, ou seja, um meio de demonstração e circulação de ideias e representações – seja para os próprios cidadãos atenienses ou para estrangeiros. Outro ponto importante para o qual Lima chama atenção é o caráter de sacralidade da produção teatral, que protegia a expressão de opiniões políticas. Além disso, o autor indica que a existência de pinturas em cerâmicas criadas a partir de temas ou passagens de peças teatrais demonstra como o teatro passou a ser uma manifestação cultural importante no repertório dos artesãos da Ática.

Em seguida, Lima aborda a questão do espaço para a representação, na qual ambos os teatrólogos e os ceramistas encontram limitações. O espaço do teatro está presente na obra do escritor teatral, como é possível observar em indicações de atores se dirigindo diretamente para a plateia e se movimentando para fora do palco. Lima relaciona essa dimensão teatral com o conceito de espaço heterotópico elaborado por Michel Foucault – no sentido que, no teatro, o espaço físico real é sobreposto por diversos espaços ilusórios durante as peças. As máscaras são um elemento importante nesse aspecto, porque são elas que permitem essa separação entre o ator e o seu personagem. Além disso, elas são consideradas unidades formais mínimas que indicam que uma cena representada na cerâmica, por exemplo, seja uma imagem de teatro.

Na segunda parte do capítulo, Talita Nunes Silva coloca essas questões em prática ao analisar a figura da personagem Clitemnestra na iconografia da cerâmica. A autora aponta que a arma específica utilizada pela personagem para realizar seus homicídios é fonte de diversos debates, já que, na tradição literária anterior às tragédias de Ésquilo, a descrição da arma era extremamente vaga – a única indicação era ser uma arma de dois gumes. No Período Arcaico, havia um conceito na tradição iconográfica que representava essa arma como uma espada, e é com essa arma que os assassinatos foram retratados nas peças de teatro de Ésquilo. Partindo da análise de algumas figuras em cerâmica do período entre 480 a 440 a.C. que retratam a personagem também com uma espada, Silva busca verificar se essa representação pode classificar Clitemnestra como uma figura “transgressora”. Segundo a autora, a utilização da espada, que é tradicionalmente associada ao masculino, demonstra uma postura viril e atribui um caráter racional aos assassinatos. Portanto, ao associar a manipulação premeditada da espada a Clitemnestra, ocorre a representação de uma mulher bem-nascida assassina, masculina e consequentemente transgressora. Silva conclui que, mais importante do que definir se as figuras em cerâmica encontradas são uma assimilação direta da dramaturgia de Ésquilo, é perceber sua existência como indicação de que, na iconografia do Período Clássico, coexistia uma percepção de Clitmenestra como uma figura transgressora ao comportamento feminino tradicional da sociedade ateniense.

Referências

LIMA, Alexandre Carneiro Cerqueira; SILVA, Talita Nunes. “Máscaras, espadas e machado: assimilações e trocas entre poetas e artesãos em Atenas Clássica”. In: Teatro Grego e Romano: História, Cultura e Sociedade. VIEIRA, Ana Livia Bomfim; ROSA, Claudia Beltrão da (og.). São Luís: Café e Lápis; Ed. UEMA, 2015.

  • Letícia Schevisbisky de Souza

Velázquez: “Las Hilanderas” e a mitologia

Las Hilanderas, de Velázquez. Fonte: Wikimedia Commons.

O quadro “Las Hilanderas” foi pintado pelo artista espanhol Diego Velázquez em cerca de 1657. Atualmente, compõe o acervo do Museu Nacional do Prado em Madrid e já possuiu diversas interpretações ao longo dos anos. Segundo o historiador José Manuel Pita Andrade (1992), apesar do quadro ter sido classificado no inventário Don Pedro de Arce como uma pintura sobre o mito de Aracne em 1664, essa interpretação mitológica foi esquecida nos séculos posteriores. Esse autor realiza uma retomada da trajetória interpretativa do quadro, que será resumida a seguir.

Durante os séculos XVIII e XIX, o quadro foi interpretado como um retrato realista de uma fábrica de tapetes, tendo sido inaugurado no Museu do Prado em 1819 como um momento da vida cotidiana. Foi nas quatro primeiras décadas do século XX que os historiadores da arte passaram a retomar interpretações místicas do quadro. Em 1903, Ricketts identificou que a imagem formada na tapeçaria ao fundo do quadro é a representação feita por Ticiano do rapto de Europa. A partir disso, em 1940, Enriqueta Harris sugeriu a presença de Atena e Aracne na pintura de Velázquez – já que, no mito, Aracne escolhe retratar em sua tapeçaria as aventuras amorosas de Zeus. Essa interpretação foi reafirmada por pesquisas de diversos outros historiadores da arte, como Diego Ângulo Íñiguez, e até hoje no Museu do Prado se apresenta o quadro como uma representação do mito de Aracne – apesar de ainda haver interpretações diversas sobre quais das figuras representam as duas mulheres do mito.

No mito, registrado por Ovídio, Aracne é uma humana extremamente talentosa na arte de bordar e tecer. Suas tapeçarias são tão impressionantes que seu talento passa a ser comparado com o da deusa Atena. A mortal, extremamente orgulhosa, decide desafiar a deusa para estabelecer definitivamente quem era melhor tecelã. Na competição, Atena representa em sua tapeçaria os deuses do Olimpo todo poderosos e o destino trágico dos humanos que ousaram desafiá-los. Aracne, por sua vez, escolheu representar as aventuras amorosas de Zeus, entre elas o rapto de Europa. Ofendida pela temática e pela qualidade do trabalho, Atena transforma Aracne na primeira aranha, condenando-a a tecer eternamente com fios sem cor.

Javier Portús Perez, historiador e chefe do Departamento de Pintura Espanhola do Museu Nacional do Prado, comenta essa obra de Velázquez em dois vídeos no canal que o museu possui no youtube. A obra é apresentada como um posicionamento de Velázquez em defesa da classificação da pintura como atividade intelectual. No período em que a obra foi produzida, discutia-se acerca da tradição artística e, ao representar o mito de Aracne, Velázquez traz um argumento importante a favor da arte. Segundo Javier Perez, os mitógrafos do século XVII viam nesse mito uma mortal que consegue competir e até mesmo superar uma deusa por meio da arte. Os humanos, portanto, possuem na arte uma capacidade infinita de progresso, sendo esse o único meio no qual podem se igualar aos deuses.

É interessante notar, portanto, como a memória em relação aos mitos clássicos vai sendo ressignificada durante a história. Enquanto, em sua origem, o mito de Aracne talvez fosse lido como uma lição sobre os perigos do orgulho e de desafiar os deuses; no humanismo espanhol do século XVII, ele pôde ser lido como um atestado da capacidade artística humana. O verdadeiro interesse de Velázquez ao pintar o quadro é inatingível para nós hoje, mas o estudo de como ele foi recebido e interpretado através dos séculos e os motivos pelos quais determinadas interpretações ganham força em diferentes momentos trazem grandes contribuições para a historiografia.

Referências:
ANDRADE, José Manuel Pita. “Realismo, Mitos y Símbolos em ‘Las Hilanderas’”. In: Cuadernos de Arte de la Universdad de Granada, n. 23, 1992, pp. 245-259.
OBRA comentada: Las hilanderas o la fábula de Aracne, Diego Velázquez. Museo Nacional del Prado, 2016. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=9kAAdkbh6Nw&gt; . Acesso em: 20. out. 2019.
OTROS ojos para ver el Prado: Las Hilanderas, de Velázquez. Museo Nacional del Prado, 2012. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=cJsBWaQIpWc&gt;. Acesso em: 20. out. 2019.

  • Letícia Schevisbisky de Souza

Guerra e Escravidão no Mundo Romano

O texto “Guerra e Escravidão no Mundo Romano”, escrito por Fábio Duarte Joly, constitui o sétimo capítulo do livro “História Militar do Mundo Antigo”, organizado por Pedro Paulo A. Funari, Margarida de Carvalho, Claudio Umpierre Carllan e Érica Cristyane Morais da Silva. Nesse texto, Joly realiza uma discussão acerca das revoltas de escravos na Roma antiga – especificamente as que ocorreram na Sicília e na Península Itálica, nos séculos II e I a. C –, apontando diversas questões oferecidas pelas fontes que merecem maiores estudos. A primeira discussão que levanta é sobre como a leitura de que, na sociedade romana, o exército era composto somente por cidadãos é uma tentativa de homogeneização – já que fontes como cartas de Plínio a Trajano atestam a presença de escravos nas tropas, seja como auxiliares de seus senhores ou recrutas ilegais. A partir dessa discussão, Joly apresenta alguns questionamentos sobre a permeabilidade da fronteira entre cidadão e escravo – destacando essa área como uma que necessita de maiores estudos.

Sobre as revoltas de escravos, o autor chama atenção para as diversas leituras realizadas sobre as fontes: Espártaco, por exemplo, foi lido no século XVIII como um ícone de inspiração na luta por liberdade política na Europa; posteriormente, foi transformado pela leitura marxista em um símbolo de revolução proletária. Além disso, também é apresentado como autores de língua latina (como Floro e César) se referem a Espártaco como um tumulto marcado por pouca organização e ausência de comando – não utilizando, portanto, a denominação de “guerra”, que seria reservada à atuação de homens livres e bem organizados. Já autores de língua latina (como Diodoro da Sicília e Plutarco) atribuem aos líderes das revoltas de escravos um olhar mais positivo. Dessa forma, Joly conclui que o discurso sobre as guerras servis tem relação com a construção da identidade grega ou romana.

O autor conclui seu texto com uma reflexão a respeito do que define o sucesso de uma revolta servil, defendendo que a visão de que as revoltas escravas são fadadas ao fracasso devido a uma incapacidade inata de organização dos escravos deve ser contestada. Isso deve ser feito implementando novos olhares às fontes – que, por apresentarem a visão da classe senhorial, são utilizadas para salientar uma ausência de grandes objetivos por parte dos escravos.

Referência:
JOLY, Fábio Duarte. “Guerra e Escravidão no Mundo Romano”. In: CARLAN, C. U.; CARVALHO, M. M.; FUNARI, P. P.; SILVA, E. C. M. (org.). História Militar do Mundo Antigo. São Paulo: Annablume, 2012, pp. 139-149.

  • Letícia Schevisbisky de Souza