Entre Hades e o Inferno: Como o Metal Traduz a Antiguidade para o Presente

Imagem de divulgação do Instagram @antigaeconexoes

Ao falar da antiguidade grega existe sempre um problema de conexões de como traduzir os temas dos mitos para uma audiência do século 21. Hades é um dos casos mais peculiares sendo o nome de ambos o deus do submundo grego e do próprio submundo, no curta-metragem de animação produzido pela Disney: A deusa da primavera (1939) o deus dos mortos aparece vestindo roupas vermelhas e chifres tendo uma aparência que remete as representações de satã, além do que o submundo aparece com vastos campos de fogo, criaturas que parecem demônios caricaturados sendo algo que remete muito ao inferno cristão. A representação mais famosa da Disney de Hades aparece porém em Hércules(1997) que apesar de usar a versão romana de seu nome uma vez que a escrita do semideus em grego era: Héracles é baseado na mitologia grega, o deus Hades é o principal vilão do filme e aparece como traiçoeiro e maquiavélico em seu papel como antagonista que visa usurpar o papel de rei dos deuses de seu irmão Zeus, a autenticidade do filme com a mitologia grega é questionável uma vez que Zeus mesmo aparece como um fiel e devoto pai de família, algo que qualquer pessoa que já leu algum mito grego acharia absurdo. Apesar de o filme não fazer explícitas associações entre o deus Hades e o diabo cristão, o filme ainda faz aproximações, em especial com Agonia e Pânico os lacaios do deus que novamente remetem a demônios cristãos caricaturados.

A associação de Hades com o diabo é algo comum e não é exclusivo nem da Disney nem do cinema. O mesmo ocorre nos videogames, por exemplo, na série God of War o deus é uma figura colossal, monstruosa e deformada com um elmo que apresenta chifres e um submundo encoberto por chamas, o Jogo Hades (2020) não difere dessa conexão onde em especial o segundo mundo Asphodel apresenta rios de lava, é descrito como “fedendo a enxofre”, apesar de o inferno ter diversas interpretações a discrição: “Fogo e enxofre” encontrada em especial no livro do apocalipse é a mais comum. No videogame Hades é então possível ver que apesar das diversas figuras gregas a aproximação do submundo com o inferno é perceptível, essa fusão que não escapou aos desenvolvedores, Darren Korb o compositor das músicas do jogo e dublador de Zagreus o protagonista do jogo disse “I wanted Hades to have a metal rock component because it’s in hell. It’s just right there for the taking” o que em uma tradução de minha autoria ficaria algo como: “Eu queria que Hades(o jogo) tivesse um componente de rock metal porque se passa no inferno. Faz todo sentido” chegamos então ao tema desse segmento a música e aqui vemos uma interessantíssima conexão a do inferno com o metal.

Tal conexão é pouquíssimo surpreendente, afinal o rock metal normalmente apresenta um profundo teor anticristão e em especial anticlerical, e o que pode ser mais anticlerical do que o diabo e o inferno? A antiguidade e em especial a mitologia também são elementos do metal em especial do Black Metal, Christodoulos Apergis discorre sobre isso no terceiro capítulo de Classical antiquity in heavy metal music, capítulo esse intitulado “Screaming Ancient Greek Hymns: The Case of Kawir and the Greek Black Metal Scene” explica que a associação com a mitologia e com os rituais pagãos gregos é necessário lembrar que a música tinha papel central nas praticas religiosas da antiga Grécia, os hymms referidos eram canções feitas para exaltar a glória dos heróis e deuses da mitologia. O Black metal, que comumente faz referências satanistas, torna mais aparente que ao tomar inspiração da mitologia grega tem a intenção de o fazer a partir da rejeição do cristianismo ao exaltar os rituais pagãos, e nesse ponto a relação do metal com do paganismo começa a fazer sentido se levadas pelo teor do anticristianismo encontrado no Black Metal.            

Até onde sabemos Darren Korb não teve a intenção de inserir um conteúdo explicitamente anticristão ao produzir a trilha sonora de Hades, porém ao o fazer ele bebe de todas essas questões e nesse ponto quando se ouve uma lira sendo harmonizada com uma guitarra elétrica após passar a frustração de morrer pelas mãos do minotauro pela centésima vez, possamos pensar em como nossas visões de passado e antiguidade também são permeadas por questões presentes, como as figuras mitológicas aparecem para nós e como a música possibilita fazer sentido a todas essas relações. E, ao ver que as associações de Hades com o diabo e do submundo com o inferno muito longe de naturais estão em um âmbito da recepção e do uso dos clássicos, é também possível entender nosso papel na construção dos sentidos que damos as coisas que parecem ser tão distantes.

Referências

APERGIS, Christodoulos. Screaming Ancient Greek Hymns: The Case of Kawir and the Greek Black Metal Scene. In: FLETCHER, K. F. B.; UMURHAN, Osman (Edição). Classical Antiquity in Heavy Metal Music. Londres: Bloomsbury Publishing, 2019. p. 77 – 96.

QUILLFELDT, Thomas. How rock band influenced hades’ soundtrack. Laced, 26 de Jan de 2021. Disponível em: <https://www.lacedrecords.co/blogs/news/how-rock-band-influenced-hades-soundtrack> Acesso em 10 de Nov. de 2021.

  • Vitor Gabriel Maidl

A Recepção da Antiguidade na Música

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Olá, pessoal! Estamos preparando as próximas publicações a partir de um novo eixo temático, a recepção da Antiguidade na Música. Dentro deste eixo, escolhemos alguns temas específicos: os usos de espaços da Antiguidade como palco para performances musicais contemporâneas; músicas que pensam a Antiguidade como temática principal; músicas que utilizam a Antiguidade de maneira mais pontual, ou seja, produzindo alusões contemporâneas a partir do que se entende sobre a Antiguidade.

A música era considerada uma das musas durante a Antiguidade. Seu nome, Euterpe, significa deleite, o que já demonstra a relação próxima entre a Música, os sentidos humanos e o prazer. Ao longo da História, a Música ocupou diferentes espaços nas mais diversas sociedades, e nas últimas décadas podemos observar o papel que esta arte ocupa em demonstrar problemas sociais, englobar identidades e, acima de tudo, divertir as pessoas. A relação entre as obras da Antiguidade e a Música não é algo novo, visto que óperas dos séculos XVIII e XIX vão se embasar em obras mitológicas sobre o período antigo. Este tipo de produção musical recupera a Antiguidade exatamente como uma continuidade da tradição clássica, algo comum no período de formação dos Estados Nacionais europeus e na construção de identidades. Entretanto, nosso foco será nas percepções da Antiguidade em músicas na contemporaneidade, ressaltando o caráter popular das apropriações do passado antigo. Nesse sentido, algumas questões norteiam nossas escolhas dentro deste eixo temático: como e por qual motivo a recuperação da Antiguidade na música popular contemporânea ocorre, quais elementos são recuperados, qual a relevância do tema dentro de gêneros musicais específicos, e por que os espaços da Antiguidade são utilizados?

A retomada da Antiguidade na música, seja a partir de músicas e álbuns totalmente dedicados ao tema, seja em referências mais pontuais, demonstra a atualidade destas temáticas e sua permanência na contemporaneidade. Sua utilização pode ser analisada como algo comum ao imaginário popular das últimas décadas, e a um conhecimento pelo passado que cada vez mais é mediado – muitas músicas, como analisaremos, terão como base produções cinematográficas e não as fontes diretamente da Antiguidade. As músicas que tratarão do tema de maneira mais exaustiva, como aquelas pertencentes ao Heavy Metal e suas vertentes, também produzirão uma leitura da Antiguidade que relaciona uma estética do estilo a alguns temas recorrentes nos relatos mitológicos e históricos. 

Além disso, a utilização de um espaço antigo em performances contemporâneas – aqui podemos citar como exemplo mais conhecido o Live in Pompeii, do Pink Floyd – demonstra de maneira bastante expressiva a relação entre passado e presente que comumente discutimos nos estudos da recepção: a retomada de um espaço antigo é sinal de sua permanência (aqui, seja em um sentido estético ou acústico), mas também sua apropriação para algo novo, um novo tipo de experiência com a arte.

Acreditamos que este eixo pode auxiliar nas discussões sobre estas diferentes leituras que a música faz da Antiguidade, promovendo sempre esta última enquanto uma permanência interessante na contemporaneidade e mostrando esta conexão entre antigos e modernos. Esperamos que vocês gostem dos textos tanto quanto nós gostamos – e nos divertimos e conhecemos coisas novas – enquanto estávamos preparando-os. E um último informe: ainda nesse mês teremos uma live no YouTube, então fiquem ligados nas nossas redes sociais!

Referências:

FLETCHER, Kristopher F. B.; OSMAN, Umurhan. (Eds.). Classical Antiquity in Heavy Metal Music. London, New York: Bloomsbury Academic, 2019.

MOORMANN, Eric M. Pompeii’s Ashes: The Reception of the Cities Burned by the Vesuvius in Literature, Music and Drama. Berlin: De Gruyter, 2015.

  • Ingrid Cristini Kroich Frandji