É com grande alegria que anunciamos nossa terceira coletânea de trabalhos – resultado direto dos eixos temáticos desenvolvidos por nosso Grupo de Estudos, História Antiga e Conexões com o Presente. Neste volume de textos, produzidos ao longo do segundo semestre de 2021, buscamos trabalhar a presença da Antiguidade na música. Portanto, nossos principais objetivos, além de reunir toda a nossa produção 2/2021 em um único material, é elaborar uma forma interativa de pensar a antiguidade a partir das mídias digitais. Para isso, juntamente dos escritos apresentados, criamos uma playlist no Youtube e no Spotify, facilitando ouvir as canções citadas durante a leitura dos textos. Para acessá-la, basta baixar nosso material e escanear os QrCodes disponíveis ou entrar em nosso canal do Youtube!
Imagem de divulgação do Instagram @Antigaeconexoes
Olá pessoal! O texto de hoje, conforme apresentado semana passada, trabalhará Recepção e Música. Para dar início às nossas análises, trazemos aqui a música “Panis et Circencis” interpretada por Os Mutantes no disco de nome “Tropicália ou Panis et Circencis”, lançado no ano de 1968. “Tropicália ou Panis et Circencis” é considerado o marco do Tropicalismo no Brasil, sendo o manifesto musical do movimento. Desse álbum participaram Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Nara Leão, Os Mutantes, Tom Zé, Capinam, Torquato Neto e Rogério Duprat.
Conforme descreveu Caetano Veloso, o movimento cultural intitulado de Tropicália objetivava romper com a música popular brasileira e buscava dar origem a “algo diferente de tudo”. Isto é, os tropicalistas eram considerados contraculturais e combinaram manifestações da cultura brasileira com tendências estrangeiras, criando músicas a partir de uma mistura de baião, caipira, pop, rock dentre outros estilos. Ainda, os tropicalistas se caracterizavam pelo excesso, usavam roupas coloridas, cabelos compridos e, a partir da violência estética, protestavam contra a música brasileira bem comportada. Segundo discutem Gonçalves e Silva (2018, p. 238), “a Tropicália surgiu em uma época bastante agitada, trazendo como objetivos ampliar os horizontes, fossem esses políticos, comportamentais, sociais, sexuais ou artísticos. Partindo de uma juventude que se opunha à falta de liberdade, especialmente infligida no Brasil com o golpe militar de 1964 e o recrudescimento da ditadura em 1968”.
O disco-manifesto tropicalista tem em seu nome a referência a famosa frase da Roma Antiga “panem et circenses”, em português, “pão e circo”. A noção de “Pão e Circo” passou no século XIX, a partir do trabalho de historiadores como Friedländer e Mommsen, a explicar um suposto ócio e alienação da plebe romana. Nesse sentido, afirmar que alguma situação se assemelha ou é um “pão e circo” tornou-se uma crítica não apenas aos romanos, mas também foi repensada em diversas outras situações contemporâneas, como no caso da música Panis et Circencis.
“Panem et circenses” vêm da Sátira X de Juvenal e conforme discute a Profa. Dra. Renata Garraffoni (2004, p. 80), a máxima de Juvenal, se descolada de seu contexto, “nos remete à tentadora possibilidade de interpretar os romanos como desinteressados pelos acontecimentos políticos a sua volta e amante dos prazeres de fácil acesso. No entanto, se recorremos a Sátira X percebemos uma situação muito distinta: nesta sátira Juvenal elabora uma dura crítica àqueles que vão ao templo pedir aos deuses riqueza, glória, beleza e juventude”. Ou seja, o entendimento da noção de “Pão e Circo” foi repensado na historiografia mais recente, e a partir de trabalhos como o de Garraffoni, percebemos que a crítica de Juvenal não volta-se ao ócio e a alienação, mas sim àqueles que faziam pedidos fúteis aos deuses, bem como os romanos que viviam em excessos.
A pergunta que fica, assim, após desconstruir tal noção pautada no século XIX, é: por que essa remetia-se e ainda, para alguns, remete-se ao ócio e alienação? Para entender essa concepção, é preciso compreender o contexto de sua formação, a qual partiu de uma ótica burguesa para criticar os que não trabalhavam e se faziam contrários à ordem capitalista. Viver de Pão e Circo, no caso, no ócio e na suposta alienação, seria caminhar na contramão dos anseios burgueses.
Voltando ao álbum e mais especificamente a música tropicalista intitulada “Panis et Circencis”, percebemos que os artistas direcionaram diversas críticas ao seu momento histórico, como também à alienação, justamente da burguesia. O álbum-manifesto conta com diversas músicas, com diversas temáticas, como Lindonéia, interpretada por Nara Leão, em que se trabalha a história de uma suburbana desaparecida; Parque Industrial, uma forma de satirizar o patriotismo o desenvolvimento da industrialização no país; e Baby, que se constitui enquanto crítica ao consumismo e a cultura de massa.
Panis et Circencis, por sua vez, é uma crítica a família burguesa e sua organização familiar. A música busca a liberdade dos moldes conservadores e da ditadura militar. Conforme afirmou Paulo Gaudêncio (TROPICÁLIA, 2012) em 1968, antes de pedir para Os Mutantes cantarem a música, “O jovem quer ser adulto, o que o jovem não quer é ser como o adulto que ele tem diante dele: um adulto quadrado, chato, que não sabe viver, moralista, um adulto realmente nada atraente”. Assim, ao vincular o nome da canção à noção de Pão e Circo, proferir “As pessoas na sala de jantar, são ocupadas em nascer e morrer” e repetir insistentemente “Essas pessoas na sala de jantar” melodicamente, Os Mutantes – e os tropicalistas – expressaram o que para eles seria Pão e Circo, a alienação para com a qual buscavam romper.
Interpretação da Música em 1969 por Os Mutantes
Música Remasterizada do álbum “Tropicália ou Panis et Circencis”
Referências
GARRAFFONI, Renata Senna. Técnica e destreza nas arenas romanas: uma leitura da gladiatura no apogeu do Império. 2004. 269 f. Tese (Doutorado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2004.
SILVA, Bruno Sanches Mariante; GONÇALVES, Jessica Yohana. Contracultura e transgressão: uma análise do álbum “tropicalia ou panis et circencis”(1968). CLIO: Revista de Pesquisa Histórica, v. 36, n. 1, p. 234-254, 2018.
Tropicália. Direção de Marcelo Machado. São Paulo: BossaNovaFilms e Record Entretenimento, 2012 (82 min).