Os Clássicos na Moda do Funk e do Rap – Texto 2: A Conquista da “Nike”

Imagem de divulgação. Instagram: @antigaeconexões.

Olá pessoal! Continuando sobre a recepção dos clássicos na moda do Funk e do Rap, hoje trataremos de outro caso, a Nike.

A Nike é uma marca de artigos esportivos fundada em 1972 por Bill Bowerman e Phil Knight no estado norte-americano do Oregon. É atualmente a maior fornecedora mundial de produtos do ramo, que vão desde indumentárias e acessórios para o dia-a-dia até esportes de alto nível. Quase que ao oposto da Versace, tratada no texto anterior, é destinada sobretudo ao público popular e usa muito pouco estampas em suas peças. Por outro lado, seu logo é ainda mais conhecido que a Medusa, o chamado Swoosh, apesar de não parecer, carrega junto do nome da marca uma recepção do passado clássico.

No mundo grego antigo, Nike foi a deusa que representava a “vitória”. Dentre as diferentes representações visuais da divindade, é bastante comum aparecer com um par de asas nas costas, e também carregando uma faixa, uma coroa, ou praticando o ato da libação, símbolos de prestígio pelas conquistas. A marca Nike, além de emprestar o nome de uma referência antiga, traz no seu logotipo uma estilização da asa da deusa, representando velocidade e ascensão.

Retornando ao mundo do Funk e do Rap, a Nike é uma marca usada com notável frequência pelos artistas principalmente por estar amplamente associada às culturas de “rua” e ao streetwear. Apesar de não figurar no mercado de luxo e ter maior relação com uma identidade estética, não deixa de representar as conquistas dos indivíduos através de peças como os chamados “tênis de mil”, entre eles, Air Max Plus, Air Max 97, Vapormax e Shox TL. Andar “virgulado”, ou com “a vírgula no pano”, apelido dado ao Swoosh pela semelhança com o sinal de pontuação, é sinônimo de estar bem vestido. Nas letras e títulos de músicas as citações são inúmeras, “Nikeboyzsport” de Yung Nobre, “Nike Bolha” de Danzo, “Máfia da Nike” de MC Davi e MC IG e “Nikes on my feet” de Mac Miller são exemplos.

Ainda, um dos mais emblemáticos usos visuais da imagem da Nike está presente no clipe da música de Rap Apeshit do casal Jay Z e Beyoncé. No vídeo, a temática propõe uma subversão dos valores elitistas da arte ocidental ao colocar os cantores e bailarinos negros em frente a obras expostas no museu do Louvre. Enquanto a canção fala sobre a ascensão dos artistas através do poder aquisitivo e as mudanças sociais que isso acarreta, o videoclipe faz o excelente papel de destacar corpos negros em contraste com espaços de identificação de uma ideologia dominante. Entretanto, o que chama atenção nesse caso, é que a Nike não aparece através das roupas, mas a deusa se materializa na estátua conhecida como Vitória de Samotrácia. Produzida em mármore entre os anos do período helenístico e descoberta somente em 1863, se encontra no topo da Escadaria Darú do Louvre. O fato de sua cabeça ainda não ter sido encontrada e assim estar exposta, ajuda no processo de desconstrução do clássico como cânone ocidental. A falta de um rosto para comparação ou “modelo” permite pensar um mundo antigo e seu usos recentes de forma multi-identitária.

Sendo assim, temos mais um exemplo bastante interessante da presença do passado clássico na nossa atualidade. Representando a vitória desde as culturas greco-romanas, o mito se transporta para a moda em uma marca extensamente difundida na cultura popular. A Nike continua protagonizando como símbolo da celebração de conquistas, dessa vez, no universo do Funk e do Rap.

Referências:

SETTIS, Salvatore. The Future of the ‘Classical’. Tradição de: Allan Cameron. Cambridge: Polity Press, 2006.

MILLER, D. Trecos, troços e coisas: estudos antropológicos sobre a cultura material. Tradução: Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

  • Guilherme Bohn dos Santos

Os Clássicos na Moda do Funk e do Rap – Texto 1: Ressignificando o Luxo de Versace

Imagem de divulgação. Instagram: @antigaeconexoes.

A Versace, marca italiana da moda de alto luxo e uma das maiores do ramo, traz em sua identidade visual um logotipo bastante conhecido, a cabeça da Medusa. O designer fundador da assinatura, Gianni Versace, teve uma infinidade de inspirações do passado clássico na construção da personalidade de sua marca principalmente pelo local onde nasceu. Reggio di Calabria, região de forte presença grega e romana na antiguidade, forneceu a Gianni diversas fontes imagéticas para que fundasse a Versace em 1978 em Milão.

Tradicionalmente no mito grego antigo, a Medusa era uma górgona, espécie de criatura de aparência grotesca e rude que transformava em pedra aqueles que a olhassem diretamente nos olhos. Com o passar do tempo, a imagem da Medusa foi se transformando de monstro em uma bela e atraente mulher. A presença de cobras no lugar dos cabelos só aparece mais tardiamente e é associada à descrição do poeta romano Ovídio. De acordo com o relato, dada a sua expressiva beleza e, por ciúmes de Atena, foi condenada a carregar serpentes no lugar das madeixas. As representações imagéticas antigas do mito foram se alterando ao longo da história apesar de continuarem sendo bastante populares. Dessa forma, a Medusa carrega consigo até hoje a ideia de uma beleza mística, que chama atenção e atrai, mas deve ser observada com cuidado.

Na Versace, desde seus primeiros desfiles até os mais atuais, é bastante comum encontrarmos a Medusa estampada nas mais variadas peças da marca. Sem cobras na cabeça mas com um rosto bastante harmonioso, se faz presente nos designs mais luxuosos, que chamam atenção pela extravagância, cores e pelas estampas nada discretas. O logotipo carrega mundo afora uma nítida recepção dos clássicos. Em contrapartida, estando atrelada ao mercado de luxo de alto valor e, destinada a um público de elevado poder aquisitivo, o uso do passado antigo, nesse caso, acaba também por reforçar o molde do clássico como sinônimo de excelência, pureza e superioridade.

Por outro lado, tais elementos podem ser totalmente adaptados e ressignificados quando absorvidos por outras culturas ou grupos de expressão artística, como é o caso do Funk e do Rap na proposta deste texto. Tanto o Funk atual, propriamente brasileiro, como o Rap nacional e internacional, têm sua origem na música negra americana de meados do século XX. Por se tratar de um gênero nascido e desenvolvido por grupos afro-descentes e de posições mais desfavorecidas socialmente, os artistas retratam com maestria as vivências dos lugares onde cresceram. É bastante comum nas letras, tanto do Funk como do Rap, estarem presentes histórias reais ou fictícias de personagens que sofreram severas opressões, sobretudo pela questão racial e econômica, e que ascenderam socialmente através da música. 

Exibir uma “vida boa” e cantar bens conquistados através do esforço de seu trabalho é um plano extremamente comum nestes gêneros. Casa, carro, jóias e roupas figuram entre os principais. A frase que figura como símbolo desse tema é “a favela venceu”. Entretanto, nesse quesito, é de extrema importância pensar que, a cultura material, para além de uma visão simplista, constitui também o sujeito e o coletivo em suas realidades. Ou seja, a “ostentação” do Funk não é superficial, mas remete a toda a trajetória e experiências de vida dos artistas. 

Hoje é mais comentado

Pilotando um importado

Degustando um destilado

Na certa, é favela

Afirmou que tô mudado

Elegante enjoado

Mais pra frente, mais ousado

Na chave de quebra

Trecho de “Pois é” de Oldilla com participação de MC Kadu, MC Paiva, MC Lemos, MC GP e MC Dena. 

Nessa visão, a moda é objeto fundamental de tal lógica. Retomando a Versace, marca extensivamente usada por cantores do Rap e do Funk e que se tornou tema de títulos e letras como em “Colar da Versace” de Mc Hariel e Andressinha ou “Versace” do trio americano de rap Migos (entre outros tantos exemplos), é um símbolo da conquista de um elevado padrão de vida. Entre as indumentárias de destaque da marca está o tênis Chain Reaction, desenvolvido pelo designer norte-americano Salehe Bembury e acompanhado pelo rapper 2 Chainz em sua campanha. No modelo, são expostos elementos de inspiração claramente antiga, como chaves gregas e um solado que parece remeter ao branco dos idealizados mármores greco-romanos, mas que materializa o formato das famosas correntes “cubanas” usadas por rappers e MCs do funk. No Brasil, o cantor MC Davi, um dos mais destacados da cena, traz em seu guarda roupa 9 pares de diferentes cores e estampas da silhueta do Chain Reaction. 

Pensando propriamente a recepção dos clássicos, o uso de marcas como a Versace por artistas de origem humilde nos propõe uma nítida subversão de um discurso de ordem e excelência. Se elementos da antiguidade clássica foram e ainda são matéria de legitimação de relações de poder, quando transportados para outros contextos culturais, são capazes de alterar um modelo hegemônico e atribuir novos significados a estes mesmos itens. O ideal construído de pureza grega agora toca o chão das favelas e ghettos. 

Rapper 2 Chainz usando Versace – Fonte da Imagem: Site oficial da Versace.

Referências:

SETTIS, Salvatore. The Future of the ‘Classical’. Tradição de: Allan Cameron. Cambridge: Polity Press, 2006.

MILLER, D. Trecos, troços e coisas: estudos antropológicos sobre a cultura material. Tradução: Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

  • Guilherme Bohn dos Santos

Recepção da Antiguidade na Música – Coletânea de Textos Temáticos

Olá, pessoal! Esperamos que estejam bem!

É com grande alegria que anunciamos nossa terceira coletânea de trabalhos – resultado direto dos eixos temáticos desenvolvidos por nosso Grupo de Estudos, História Antiga e Conexões com o Presente. Neste volume de textos, produzidos ao longo do segundo semestre de 2021, buscamos trabalhar a presença da Antiguidade na música. Portanto, nossos principais objetivos, além de reunir toda a nossa produção 2/2021 em um único material, é elaborar uma forma interativa de pensar a antiguidade a partir das mídias digitais. Para isso, juntamente dos escritos apresentados, criamos uma playlist no Youtube e no Spotify, facilitando ouvir as canções citadas durante a leitura dos textos. Para acessá-la, basta baixar nosso material e escanear os QrCodes disponíveis ou entrar em nosso canal do Youtube!

Download Volume III – Recepção da Antiguidade na Música: https://drive.google.com/file/d/1Txo40KFZIN8_5wpdorjui7YkJQaAzbYv/view?usp=sharing

Prometeu Negro: A recepção do mito clássico no rap

Imagem de divulgação do Instagram @antigaeconexoes

O rap (ritmo e poesia), em linhas gerais, é a expressão musical do movimento Hip-Hop, uma cultura essencialmente negra e periférica desde sua origem, surgida nos guetos dos Estados Unidos e com influência jamaicana e africana. No Brasil, não foi diferente. Aqui, o rap ganhou notoriedade com o fenômeno dos Racionais Mc’s, verdadeiros cronistas da época que traziam em suas punchlines¹ o cotidiano da periferia, sobretudo a realidade do crime e da violência policial.  Desde então, em meio a efervescência de nomes e produções surgidos na música rap, temos Beni KTT, rapper carioca, produtor e fundador da Produtora Audiovisual Máfia da Caneta.

A recepção da Antiguidade Clássica no rap, embora pouco estudada e comentada, não é nova, nem ínfima. É bastante significativo o número de raps que encontram na Antiguidade Clássica Grega ou Romana uma simbologia que reflete questões próprias do humano, sobretudo o repertório mitológico, que é muitas vezes fonte de inspiração para inúmeros rappers, como podemos observar em Pandora (Sant, Tiago Mac, Bukola 2Tey, 2019), no Minotauro de Borges (Baco Exu do Blues, 2019), em Afrodite da Quebrada (Rart MC, 2017), em Medusa (Nectar Gang; Qualy, 2017), em Hades (Xamã, 2017), em Afrodite (Nocivo Shomon, 2016) e, ainda, em Caixa de Pandora (Caos do Suburbio, 2016), apenas para citar alguns. Entre estes tantos exemplos, temos Prometeu,rap de Beni, publicado no álbum Negros (2016), que ganhou videoclipe tempos depois e trata de um dos mitos cosmogônicos greco-romamos mais conhecidos, o mito de Prometeu, registrado pela primeira vez em Hesíodo (Theog., 517-616; Op. et dies, 42-105). Em linhas gerais, o mito de Prometeu conta a história do Titã Prometeu, que entra em conflito com Zeus ao roubar dele o fogo e entregá-lo aos mortais. Por isso, Zeus (ou Júpiter) envia aos homens um mal, podemos dizer, travestido, com o qual eles se alegrarão, a primeira mulher, Pandora. Além de condená-lo a uma tortura eterna no Monte Cáucaso, onde ficou acorrentado tendo seu fígado (ou coração) sendo regenerado e comido todos os dias por uma águia. Em algumas versões, Prometeu é o próprio criador dos homens.

Imagem: Capa do álbum Negros (2016). Créditos: Beni.

Em entrevista generosamente concedida por Beni para essa pesquisa, o rapper afirmou que seu primeiro contato com o mito de Prometeu foi através do jogo eletrônico “God of War”, baseado nas mitologias grega e nórdica. O Prometeu de Beni nos apresenta um novo olhar para o célebre mito com questões que nos levam a perguntar por que Prometeu teria roubado e entregado o fogo aos mortais: por amor, ódio ou loucura? Em seu rap, Beni se apropria desse conhecido personagem mítico e apresenta Prometeu como um herói, um benfeitor. Um outro aspecto bastante relevante no rap de Beni é que o mito de Prometeu é tomado de forma primorosa pelo rapper em analogia à trajetória do povo negro no Brasil e no mundo. O fogo, como representação da inteligência e da sabedoria, que os retira das trevas e da ignorância, como afirmado por Sottomayor (2001), parece ganhar um novo sentido nas mãos de Beni, que faz desse símbolo uma tomada de consciência do povo negro, o que pressupõe que ela outrora não existia. Isto é, os mortais viviam nas trevas, pois não tinham consciência de sua condição miserável frente aos deuses, assim como os negros, até que Prometeu cometendo um ato humanitário entrega-lhes essa força divina, o fogo:

“O roubo do fogo sagrado foi certo na pontaria

Siga, siga, siga, siga

A luta é constante, então siga

Batalha de gigante, então siga

Não perca-se, avante!”

Beni constrói um Prometeu Negro brasileiro? Por quê? O que é recuperado pelo rapper brasileiro ou não do mito clássico em suas várias versões? Essas são algumas questões que pretendemos ainda responder com a pesquisa “A recepção crítica do mito de Prometeu no rap de Beni: reflexões sobre raça e identidade”.

Beni - Prometeu Prod:Beni (Video Clipe Oficial)

Imagem: Divulgação.

Agradecimentos

Ao rapper Beni pela generosa concessão da entrevista, à Professora Renata Senna Garraffoni pelo convite em publicar neste blog,  à Professora Priscila Matsunaga pelas contribuições e pela sua leitura crítica e à minha orientadora querida e sempre presente, Professora Katia Teonia.

Notas

¹ A expressão é utilizada no rap para se referir às “linhas de soco” usadas pelos rappers, ou seja, versos fortes, chamativos, apelativos, para chamar atenção na track.

Referências bibliográficas

SOTTOMAYOR. Ana Paula Q. O Fogo de Prometeu. Hvmanitas, Porto, vol. III, p. 133-140, 2001. p. 138.

PROMETEU. Compositor e intérprete: Beni. In: Negros. Produzido por Máfia da Caneta. [S.l], 2016. Disponível em: Beni – Prometeu Prod:Beni (Video Clipe Oficial) – YouTube. Acesso em: 22 março. 2021. Faixa 2. (3 min)

  • Karoline Lima – Bacharelanda em Letras Português e Latim (UFRJ) 

Orientação: Prof.ª Katia Teonia Costa de Azevedo