É com grande alegria que anunciamos nossa terceira coletânea de trabalhos – resultado direto dos eixos temáticos desenvolvidos por nosso Grupo de Estudos, História Antiga e Conexões com o Presente. Neste volume de textos, produzidos ao longo do segundo semestre de 2021, buscamos trabalhar a presença da Antiguidade na música. Portanto, nossos principais objetivos, além de reunir toda a nossa produção 2/2021 em um único material, é elaborar uma forma interativa de pensar a antiguidade a partir das mídias digitais. Para isso, juntamente dos escritos apresentados, criamos uma playlist no Youtube e no Spotify, facilitando ouvir as canções citadas durante a leitura dos textos. Para acessá-la, basta baixar nosso material e escanear os QrCodes disponíveis ou entrar em nosso canal do Youtube!
Dando continuidade ao tema de reconfiguração de Pompeia no mundo musical, hoje nosso texto se dispõe a analisar a psicodelia, sutilmente aplicada aos níveis da visualidade a partir de cortes e recortes, de uma mescla desordenada de elementos óticos, já vistos na obra de Madimboo (para saber mais, clique aqui), em outras composições. Aqui, tomaremos como centro de nossos olhares – ou, melhor, de nossa escuta – a produção de Pink Floyd realizada nas ruínas de Pompeia (1972), que servirá como ponto de reflexão sobre a repercussão de uma “psicodelia sonora” nos e sobre os ambientes pompeianos.
Pink Floyd foi uma banda inglesa, formada em Londres no ano de 1965. Conhecido como um grupo musical de rock psicodélico e também de rock progressivo, destacou-se principalmente pela composição de músicas longas, pela experimentação sonora e por letras críticas e filosóficas. Seu primeiro álbum, “The Piper at the Gates of Dawn”, foi lançado em 1967 e chegou a ser o sexto álbum mais vendido do Reino Unido. Desde esse primeiro momento, o grupo musical já explorava letras e passagens instrumentais psicodélicas, fazendo uso da guitarra elétrica e cantando acerca de temas fantasiosos e imaginários como gnomos e contos de fadas. Com a saída do vocalista e guitarrista Syd Barret do grupo em 1968, Roger Waters tornou-se o letrista principal e liderou a produção de álbuns de grande sucesso como “The Dark Side of the Moon” (1973); “Wish You Were Here” (1975); e “The Wall” (1979); todos os três posteriores ao concerto realizado nas ruínas de Pompeia.
“Pink Floyd: Live at Pompeii” foi um concerto realizado em 1971 e lançado em 1972. Foi dirigido por Adrian Maben, que também teve a ideia de produzir a apresentação da banda em um anfiteatro romano presente em Pompéia. A gravação durou quatro dias e os músicos realizaram um espetáculo ao vivo comum ao que se era feito no período, com exceção de que não havia público no local além da equipe de filmagem. Dentre as músicas que são apresentadas no lançamento do concerto estão: “Echoes”; “Careful With That Axe Eugene”; “A Saucerful Of Secrets; “One Of These Days I’m Going To Cut You Into Little Pieces”; “Set The Controls For The Heart Of The Sun”; “Mademoiselle Nobs”.
Enfatizando as tragédias dos últimos dias de vida da cidade romana, o grupo musical parece, pois, retomar os paradoxos desse destino. O qual, conforme já visto na publicação anterior de Paul e Hales (2011), constitui-se como fator elementar da agitação romântica setecentista e, por consequência, um motivo essencial na retomada da narrativa pompeiana desde então. Ao Pink Floyd integrar o respectivo passado romano em sua produção, a banda acabou por refletir também sobre a continuidade de Pompeia, essa proveniente de uma súbita desaparição – causada pela erupção do Vesúvio. Por consequência, a produção musical se fez capaz de repensar a vivência moderna entre as ruínas romanas, possibilitando refletir sobre uma experiência que se inclui, ao mesmo tempo, em resquícios de uma temporalidade passada e em aspectos de uma vivência de atualidade.
Nessa mesma linha, nos é interessante perceber que por parte do grupo, existe a recolocação das imagens de Pompeia sob representações oníricas, entre os embates da realidade e da ficção, da vida e da morte, do passado e do presente, ecoando uma fruição imaginativa romântica, tal qual constatado por Recio (2010). Aproximam-se desse caminho o sonho e a morte, trespassados pelos reflexos psicanalíticos deflagrados pelas ambivalências comuns à mente humana e à ressurreição de suas ruínas. Como exemplo, no concerto de Pink Floyd, podemos citar a contraposição da convivência entre o passado, simbolizado nas ruínas, e o presente, expresso visualmente sob a colocação de equipamentos técnicos e de performance em seu anfiteatro. Além disso, a inserção de imagens da cultura material da cidade (como entre os minutos 19:45-20:10) parece, de igual forma, evocar um sentimentalismo sobre o contraditório fim dos espaços pompeianos.
Por meio de tais conexões, podemos, pois, argumentar que tais elementos, figurados sob representações literárias e psíquicas e perpetuados sobre as dualidades inerentes ao passado e ao presente pompeiano, tornam a ser evocados pelo grupo musical britânico, mas sob uma espécie de “transcrição” desenrolada por uma percepção sonora única. Afinal, sob uma insinuante criatividade atrelada ao mundo dos sonhos, do subconsciente e do inconsciente, cria-se nessas canções performadas no limiar dos vestígios de Pompeia, uma sonoridade que aparenta almejar um novo contato com os “fantasmas” da cidade. Desse modo, é perceptível como acabam por lançar uma percepção musical singular e inovadora no tocante a esse evento da Antiguidade romana, embasada em sons que, perturbando os sentidos, remetem ao mundo dos sonhos através de um ritmo de iminente psicodelia. Como um exemplo desse caráter inaugural, podemos apreender a repercussão dessa musicalidade desde uma sincronia sonora encontrada no álbum “Pompeii” de Triumvirat (1977), cujos ritmos nos recordam, abertamente, uma mesma evocação psicodélica e onírica do passado pompeiano.
Referências:
PAUL, J.; HALES, S. Introduction: Ruins and reconstructions. In: _____ (Ed.). Pompeii in the Public Imagination from its Rediscovery to Today. New York: Oxford University Press, 2011. p. 1-14.
RECIO, M. R. Pompeya: Vida, muerte y resurrección de la ciudad sepultada por el Vesubio. Madrid: La Esfera de los Libros, 2010.
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Por certo, a popularidade de Pompeia está reconhecida em seu destino trágico, em sua paradoxal destruição e conservação pelas obras do Vesúvio. Por isso, não é estranho ouvir narrativas musicalizadas sobre esses eventos pompeianos, os quais, dramatizados e metaforizados, passaram a ser parte das letras de músicas dos mais variados gêneros, tais como o pop, o folk e o MPB. A exemplo de cada um desses estilos, hoje trabalharemos brevemente com as produções de Bastille, de Spaccanapoli e de Madimboo, grupos cujas canções, transitantes entre esses distintos gêneros, abordam, sob diferentes perspectivas, os últimos dias da vida da cidade romana.
Iniciando pelo hit da banda inglesa, com o sugestivo título “Pompeii”, parte do álbum “Bad Blood” (2013), são reveladores seus anseios de reavivamento dos “fantasmas” pompeianos. Incitando sua trama a partir de um diálogo entre duas das vítimas do vulcão, como indicado por Nĕmčíková (2021), os compositores ecoam, ainda, as noções de uma purgação dos “pecados” de seus conterrâneos: “Oh where do we begin? / The rubble or our sins? / And the walls kept tumbing down / In the city that we love / Grey clouds roll over the hills / Bringing darkness from above” (Em tradução livre: “Oh por onde começamos? / Pelos destroços ou por nossos pecados? / E as paredes seguiram caindo / Na cidade que amamos / Nuvens cinzas rolando pelas colinas / Trazendo a escuridão de cima”).Porém, é extremamente interessante notar como repassam a ação justiceira às mãos das próprias divindades romanas, formando, assim, uma curiosa apropriação da tradição providencialista que, em um caráter essencialmente religioso e cristão, fora principiada entre os românticos da literatura oitocentista.
Vídeo da música Pompeii, de Bastille (2013)
Nessa mesma linha poética, que desvenda a ação vulcânica como caminho de purgação, encontramos a música “Vesuvio”, do álbum “Lost Souls” (2012) da banda napolitana Spaccanapoli. Um grupo musical dedicado à retomada do passado italiano e da tradição mediterrânica, em performances nos moldes da tarantella e frones, são suas produções essencialmente contextualizadas pelo movimento contracultural italiano. Afinal, conforme apreendido através do histórico delineado por Vacca (2012), é perceptível sua integração na tendência de uma reformulação da música folclórica e tradicional napolitana, reanimando, no entremeio dos processos de globalização, a força dos dialetos locais à musicalidade. Integrando, por esse modo, um cenário contestador, a canção se dirige ao poder destruidor erigido sob a égide do Vesúvio: “Você é o purgador de todo esse povo / que vive em favelas e que vive em necessidade, e ainda, aonde devemos ir? / Antes que o dia amanheça / o rio de lava nos arrastará e nos deixará sem casa / Você é uma montanha, mas que montanha!” (Em tradução livre do inglês1). Dessa forma, pode-se pensar em uma recontextualização do passado destruidor do vulcão, articulada de modo a tecer críticas pertinentes às questões sociais atuais da Itália.
Vídeo com a gravação da música Vesuvio, de Spaccanapoli (2012)
Por fim, e em um sentido distinto, o grupo musical pernambucano Madimboo, em seu álbum “Flertar é Humano” (2019), recorre aos “Últimos Dias de Pompéia” para refletir sobre as relações amorosas, metaforizando seus percalços e desilusões. Em uma estética e em uma sonoridade de insinuante psicodelia, como observado por Pinheiro (2019), seus produtores retomam a aura onírica da cidade. Mais essencialmente, porém, nos parece haver um realce na retomada das ambiguidades do destino de Pompeia, um dos motivos principais das representações da cidade exterminada e, ao mesmo tempo, preservada, como visto por Paul e Hales (2011). De mesmo modo, chama a atenção o sentimentalismo incontrolável, talvez em uma outra continuidade do ideal romântico sobre o descontrole das ações vesuvianas: “Pode guardar teu latim / Guardei o teu lugar […] Cai o céu entre os meus braços / E o que o sentimento / Não controla / Coração dentro do ventre / O mesmo engano / Me apavora”.
Videoclipe da música Os Últimos Dias de Pompéia, de Madimboo (2019)
Traçando algumas últimas considerações, gostaríamos de realçar como a manifestação musicalizada sobre as narrativas voltadas ao fim de Pompeia, expressas nos mais diversos gêneros musicais, mantém viva, em seu conjunto, uma noção de providencialismo, de vivacidade do poder da natureza, de animosidade do furor punitivo do Vesúvio. Assim, veiculam os “mitos pompeianos” (ST. CLAIR; BAUTZ, 2012), originários em sua fama pelo romantismo vitoriano de Lytton, pelas tragédias das ficcionais vidas de Nídia, Ione e Glauco.
NĔMČÍKOVÁ, Hana. Intertextuality and Popular Music: Bastille. 2021. Tese (Bacharelado) – Faculdade de Humanidade, Tomas Bata University in Zlín, 2021.
PAUL, Joanna; HALES, Shelley. Introduction: Ruins and reconstructions. In: _____ (Ed.). Pompeii in the Public Imagination from its Rediscovery to Today. New York: Oxford University Press, 2011. p. 1-14.
RECIO, Mirella Romero. Pompeya: Vida, muerte y resurrección de la ciudad sepultada por el Vesubio. Madrid: La Esfera de los Libros, 2010.
ST CLAIR, William; BAUTZ, Annika. Imperial decadence: the making of the myths in Edward Bulwer-Lytton’s The Last Days of Pompeii. Victorian Literature and Culture, n. 40, p. 359-396, 2012.
VACCA, Giovanni. Music and Countercultures in Italy: the Neapolitan Scene. Volume!, v. 9, n. 1, 2012. ]
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Olá, pessoal! Dando seguimento na temática de música e recepção, no post de hoje pretendo trazer reflexões de como a questão mitológica aparece no cenário indie e alternativo. Muitas bandas e artistas desses gêneros trazem referências aos antigos e a mitologia, como é o caso da cantora Björk, com sua música de título Venus As A Boy, ou com a banda Peach Pit na música Alright Aphrodite, ainda na canção Persephone da banda Tamino, enfim, esses são só alguns exemplos de como a mitologia pode ser encontrada no cenário das músicas indies. Porém, pretendo somente tratar de um caso, do cantor e compositor Andrew Bird, que em algumas de suas canções faz alusão à temática mitológica, como em sua composição mais famosa que leva o nome de Sisyphus, em alusão ao mito de Sísifo.
Sísifo é o personagem mitológico, descrito como um homem de esperteza notável, filho de Éolo e rei da Tessália. Ele teria desafiado os deuses e recebido então um castigo pior que a morte, sendo obrigado a empurrar uma pedra para o topo de uma montanha, ao chegar ao topo a pedra rolava para baixo da montanha e Sísifo havia de recomeçar o trabalho, assim incessantemente. O personagem mitológico ficou bastante conhecido pela retomada que o filósofo argelino Albert Camus faz de sua narrativa, a recuperação do personagem se faz para tratar a respeito de questões existenciais, se a vida valeria ou não ser vivida, onde o filósofo discorre a respeito de questões da modernidade, como a relação do homem com a rotina, do sentimento absurdo causado pela relação de estranheza do homem com o mundo, das fugas para tal sentimento, chamadas por ele de “saltos”, e de diversas questões a respeito da modernidade. Em sua narrativa ele transforma o personagem em um herói do absurdo que cumpre sua fatídica tarefa, superando o sentimento de desrealização com o mundo e positivando seu castigo, como coloca Camus “É preciso imaginar o sísifo feliz”.
Na música do cantor e compositor norte americano, que faz parte do seu álbum denominado “My finest work yet” de 2019, a questão da tarefa de Sísifo é explorada, porém diferente da narrativa de Camus. Andrew apresenta outras opções para o personagem, onde já na primeira estrofe da música, questiona: “Did he jump or did he fall as he gazed into the maw of the morning mist?”, em tradução livre seria: “Ele pulou ou caiu enquanto olhava para o abismo da manhã enevoada?”, Bird continua a música dizendo que “ele levantou os pulsos dizendo ‘para o inferno com isso’, e só deixou a pedra rolar?”; nessa versão do mito, Sísifo não cumpre seu castigo, deixando que a pedra rolasse, esmagando tudo que se encontrava abaixo, sendo o refrão da música: “Let it roll, let it crash down low /There’s a house down there but I lost it long ago /Let it roll, let it crash down low /See my house down there but I lost it long ago/ Lost it long ago”, ou seja na versão de Bird, Sísifo não cumpre seu castigo, mas salta para o abismo, deixando a pedra rolar cidade abaixo, Andrew Bird diz “A história esquece os moderados/ aqueles que sentam recalcitrantes e taciturnos/ Você sabe eu prefiro voltar e queimar do que escalar esse edifício.”Na versão de Bird, diferente de Camus, é preferível o salto e a revolta do que aceitar o castigo imposto pelos deuses, Sísifo prefere voltar para o castigo no submundo a se entregar a tarefa absurda de empurrar a pedra para o topo novamente.
Esse é só um exemplo de como os mitos podem ser retomados na música. Aqui a questão é de cunho existencial, mas como citado muitas outras bandas e cantores apresentaram suas versões sobre os mitos em diversas de suas letras, abordando diferentes temáticas com suas reflexões, propondo então leituras diferente de narrativas antigas que podem trazer muitas considerações sobre temáticas não somente referente a antiguidade, mas também com o cenário contemporâneo.
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O rap (ritmo e poesia), em linhas gerais, é a expressão musical do movimento Hip-Hop, uma cultura essencialmente negra e periférica desde sua origem, surgida nos guetos dos Estados Unidos e com influência jamaicana e africana. No Brasil, não foi diferente. Aqui, o rap ganhou notoriedade com o fenômeno dos Racionais Mc’s, verdadeiros cronistas da época que traziam em suas punchlines¹o cotidiano da periferia, sobretudo a realidade do crime e da violência policial. Desde então, em meio a efervescência de nomes e produções surgidos na música rap, temos Beni KTT, rapper carioca, produtor e fundador da Produtora Audiovisual Máfia da Caneta.
A recepção da Antiguidade Clássica no rap, embora pouco estudada e comentada, não é nova, nem ínfima. É bastante significativo o número de raps que encontram na Antiguidade Clássica Grega ou Romana uma simbologia que reflete questões próprias do humano, sobretudo o repertório mitológico, que é muitas vezes fonte de inspiração para inúmeros rappers, como podemos observar em Pandora (Sant, Tiago Mac, Bukola 2Tey, 2019), no Minotauro de Borges (Baco Exu do Blues, 2019), em Afrodite da Quebrada (Rart MC, 2017), em Medusa (Nectar Gang; Qualy, 2017), em Hades (Xamã, 2017), em Afrodite (Nocivo Shomon, 2016) e, ainda, em Caixa de Pandora (Caos do Suburbio, 2016), apenas para citar alguns. Entre estes tantos exemplos, temos Prometeu,rap de Beni, publicado no álbum Negros(2016), que ganhou videoclipe tempos depois e trata de um dos mitos cosmogônicos greco-romamos mais conhecidos, o mito de Prometeu, registrado pela primeira vez em Hesíodo (Theog., 517-616; Op. et dies, 42-105). Em linhas gerais, o mito de Prometeu conta a história do Titã Prometeu, que entra em conflito com Zeus ao roubar dele o fogo e entregá-lo aos mortais. Por isso, Zeus (ou Júpiter) envia aos homens um mal, podemos dizer, travestido, com o qual eles se alegrarão, a primeira mulher, Pandora. Além de condená-lo a uma tortura eterna no Monte Cáucaso, onde ficou acorrentado tendo seu fígado (ou coração) sendo regenerado e comido todos os dias por uma águia. Em algumas versões, Prometeu é o próprio criador dos homens.
Imagem: Capa do álbum Negros (2016). Créditos: Beni.
Em entrevista generosamente concedida por Beni para essa pesquisa, o rapper afirmou que seu primeiro contato com o mito de Prometeu foi através do jogo eletrônico “God of War”, baseado nas mitologias grega e nórdica. O Prometeu de Beni nos apresenta um novo olhar para o célebre mito com questões que nos levam a perguntar por que Prometeu teria roubado e entregado o fogo aos mortais: por amor, ódio ou loucura? Em seu rap, Beni se apropria desse conhecido personagem mítico e apresenta Prometeu como um herói, um benfeitor. Um outro aspecto bastante relevante no rap de Beni é que o mito de Prometeu é tomado de forma primorosa pelo rapper em analogia à trajetória do povo negro no Brasil e no mundo. O fogo, como representação da inteligência e da sabedoria, que os retira das trevas e da ignorância, como afirmado por Sottomayor (2001), parece ganhar um novo sentido nas mãos de Beni, que faz desse símbolo uma tomada de consciência do povo negro, o que pressupõe que ela outrora não existia. Isto é, os mortais viviam nas trevas, pois não tinham consciência de sua condição miserável frente aos deuses, assim como os negros, até que Prometeu cometendo um ato humanitário entrega-lhes essa força divina, o fogo:
“O roubo do fogo sagrado foi certo na pontaria
Siga, siga, siga, siga
A luta é constante, então siga
Batalha de gigante, então siga
Não perca-se, avante!”
Beni constrói um Prometeu Negro brasileiro? Por quê? O que é recuperado pelo rapper brasileiro ou não do mito clássico em suas várias versões? Essas são algumas questões que pretendemos ainda responder com a pesquisa “A recepção crítica do mito de Prometeu no rap de Beni: reflexões sobre raça e identidade”.
Imagem: Divulgação.
Agradecimentos
Ao rapper Beni pela generosa concessão da entrevista, à Professora Renata Senna Garraffoni pelo convite em publicar neste blog, à Professora Priscila Matsunaga pelas contribuições e pela sua leitura crítica e à minha orientadora querida e sempre presente, Professora Katia Teonia.
Notas
¹ A expressão é utilizada no rap para se referir às “linhas de soco” usadas pelos rappers, ou seja, versos fortes, chamativos, apelativos, para chamar atenção na track.
Referências bibliográficas
SOTTOMAYOR. Ana Paula Q. O Fogo de Prometeu. Hvmanitas, Porto, vol. III, p. 133-140, 2001. p. 138.
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Dando sequência aos textos sobre música e recepção da antiguidade, hoje traremos a figura do cantor Zé Ramalho e seu uso dos mitos antigos nas canções.
Dos diversos atributos que a mídia confere ao revolucionário cantor e compositor paraibano Zé Ramalho, recebem maior destaque seus aspectos místicos e visionários, que bradam um discurso de resistência a norma e ao “verdadeiro” estabelecidos pela parte dominante da sociedade. Na elaboração de suas canções, o autor mistura sons que vêm do Rock com métricas e melodias próprias do sertão, ao mesmo tempo, cria estruturas que transmitem um sentimento de anunciação aos ouvintes. Em sua identidade poética, o cantor também utiliza de referências a antiguidade clássica em diversas de suas músicas. Se aproveitando principalmente dos mitos gregos, produziu sentidos atuais para os contos lendários a partir da elaboração de alegorias e comparações.
Acentuando sua face visionária de mensagens apocalípticas, anúncios de liberdade e visões de futuro, Zé Ramalho se engaja politicamente mais uma vez ao lançar seu terceiro álbum em 1981, “A Terceira Lâmina”. Como fala Petrônio Fernandes Beltrão, “a profecia agonizante de um devir de liberdade ante a situação social do Brasil na época da ditadura militar”. (BELTRÃO, 2012). Das faixas desse álbum, a canção “Filhos de Ícaro”, que já em seu título traz consigo o mundo antigo, é uma crítica incisiva não somente ao regime, como também à alienação e acomodação da população brasileira diante da situação do período.
No conhecido mito, Ícaro e seu pai, Dédalo, acabaram aprisionados no labirinto que eles mesmo haviam construído na ilha de Creta para recluir o Minotauro. Na tentativa de fuga, os dois elaboraram asas feitas de cera para que pudessem voar para fora das paredes do labirinto. Entretanto, Ícaro, ignorando os conselhos do pai para não voar muito perto do Sol, se aproximou do astro que, com o calor, derreteu suas asas e acabou por matar Ícaro ao derrubá-lo no mar.
Zé Ramalho, na música citada, canta os seguintes versos:
“As alturas merecem todas as asas Homens de plumas Antes do sol derreter As unhas desse meu pássaro”
Em sua crítica ao povo por sua neutralidade em relação a ditadura, Zé Ramalho faz uma alegoria do povo como Ícaro e do regime militar como o Sol. O cantor pede para que “façam coisas pela liberdade” sem se deixarem levar pelos ideais do regime que atraíam parte da população. Caso contrário, assim como Ícaro caiu no mar ao tentar admirar o Sol de perto, os cidadãos poderiam acabar “caindo” no discurso da ditadura se decidissem por aceitá-la de forma neutra.
Se pensarmos os poetas gregos da antiguidade como transmissores de uma memória coletiva através da tradição literária cantada, podemos pensar também no sujeito-cantor Zé Ramalho como um escritor que, transcrevendo o mito antigo para seu mundo atual, performa suas mensagens em nome de causas sociais e atribui novos sentidos a essa esfera da história clássica. Dessa forma, ao adaptar o mito, Zé Ramalho acaba por criar uma releitura da antiguidade em seu cenário contemporâneo.
Link da música
Bibliografia consultada
BELTRÃO, P. F. A Insurgência, o Visionarismo e a Nordestinidade como marcas identitárias do Sujeito-Poeta-Cantor Zé Ramalho. 2012. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal da Paraíba.
VERNANT, Jean-Pierre, 1914. Mito e religião na Grécia antiga. Trad. Joana Angelica D’avila Melo. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
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Olá pessoal! O texto de hoje, conforme apresentado semana passada, trabalhará Recepção e Música. Para dar início às nossas análises, trazemos aqui a música “Panis et Circencis” interpretada por Os Mutantes no disco de nome “Tropicália ou Panis et Circencis”, lançado no ano de 1968. “Tropicália ou Panis et Circencis” é considerado o marco do Tropicalismo no Brasil, sendo o manifesto musical do movimento. Desse álbum participaram Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Nara Leão, Os Mutantes, Tom Zé, Capinam, Torquato Neto e Rogério Duprat.
Conforme descreveu Caetano Veloso, o movimento cultural intitulado de Tropicália objetivava romper com a música popular brasileira e buscava dar origem a “algo diferente de tudo”. Isto é, os tropicalistas eram considerados contraculturais e combinaram manifestações da cultura brasileira com tendências estrangeiras, criando músicas a partir de uma mistura de baião, caipira, pop, rock dentre outros estilos. Ainda, os tropicalistas se caracterizavam pelo excesso, usavam roupas coloridas, cabelos compridos e, a partir da violência estética, protestavam contra a música brasileira bem comportada. Segundo discutem Gonçalves e Silva (2018, p. 238), “a Tropicália surgiu em uma época bastante agitada, trazendo como objetivos ampliar os horizontes, fossem esses políticos, comportamentais, sociais, sexuais ou artísticos. Partindo de uma juventude que se opunha à falta de liberdade, especialmente infligida no Brasil com o golpe militar de 1964 e o recrudescimento da ditadura em 1968”.
O disco-manifesto tropicalista tem em seu nome a referência a famosa frase da Roma Antiga “panem et circenses”, em português, “pão e circo”. A noção de “Pão e Circo” passou no século XIX, a partir do trabalho de historiadores como Friedländer e Mommsen, a explicar um suposto ócio e alienação da plebe romana. Nesse sentido, afirmar que alguma situação se assemelha ou é um “pão e circo” tornou-se uma crítica não apenas aos romanos, mas também foi repensada em diversas outras situações contemporâneas, como no caso da música Panis et Circencis.
“Panem et circenses” vêm da Sátira X de Juvenal e conforme discute a Profa. Dra. Renata Garraffoni (2004, p. 80), a máxima de Juvenal, se descolada de seu contexto, “nos remete à tentadora possibilidade de interpretar os romanos como desinteressados pelos acontecimentos políticos a sua volta e amante dos prazeres de fácil acesso. No entanto, se recorremos a Sátira X percebemos uma situação muito distinta: nesta sátira Juvenal elabora uma dura crítica àqueles que vão ao templo pedir aos deuses riqueza, glória, beleza e juventude”. Ou seja, o entendimento da noção de “Pão e Circo” foi repensado na historiografia mais recente, e a partir de trabalhos como o de Garraffoni, percebemos que a crítica de Juvenal não volta-se ao ócio e a alienação, mas sim àqueles que faziam pedidos fúteis aos deuses, bem como os romanos que viviam em excessos.
A pergunta que fica, assim, após desconstruir tal noção pautada no século XIX, é: por que essa remetia-se e ainda, para alguns, remete-se ao ócio e alienação? Para entender essa concepção, é preciso compreender o contexto de sua formação, a qual partiu de uma ótica burguesa para criticar os que não trabalhavam e se faziam contrários à ordem capitalista. Viver de Pão e Circo, no caso, no ócio e na suposta alienação, seria caminhar na contramão dos anseios burgueses.
Voltando ao álbum e mais especificamente a música tropicalista intitulada “Panis et Circencis”, percebemos que os artistas direcionaram diversas críticas ao seu momento histórico, como também à alienação, justamente da burguesia. O álbum-manifesto conta com diversas músicas, com diversas temáticas, como Lindonéia, interpretada por Nara Leão, em que se trabalha a história de uma suburbana desaparecida; Parque Industrial, uma forma de satirizar o patriotismo o desenvolvimento da industrialização no país; e Baby, que se constitui enquanto crítica ao consumismo e a cultura de massa.
Panis et Circencis, por sua vez, é uma crítica a família burguesa e sua organização familiar. A música busca a liberdade dos moldes conservadores e da ditadura militar. Conforme afirmou Paulo Gaudêncio (TROPICÁLIA, 2012) em 1968, antes de pedir para Os Mutantes cantarem a música, “O jovem quer ser adulto, o que o jovem não quer é ser como o adulto que ele tem diante dele: um adulto quadrado, chato, que não sabe viver, moralista, um adulto realmente nada atraente”. Assim, ao vincular o nome da canção à noção de Pão e Circo, proferir “As pessoas na sala de jantar, são ocupadas em nascer e morrer” e repetir insistentemente “Essas pessoas na sala de jantar” melodicamente, Os Mutantes – e os tropicalistas – expressaram o que para eles seria Pão e Circo, a alienação para com a qual buscavam romper.
Interpretação da Música em 1969 por Os Mutantes
Música Remasterizada do álbum “Tropicália ou Panis et Circencis”
Referências
GARRAFFONI, Renata Senna. Técnica e destreza nas arenas romanas: uma leitura da gladiatura no apogeu do Império. 2004. 269 f. Tese (Doutorado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2004.
SILVA, Bruno Sanches Mariante; GONÇALVES, Jessica Yohana. Contracultura e transgressão: uma análise do álbum “tropicalia ou panis et circencis”(1968). CLIO: Revista de Pesquisa Histórica, v. 36, n. 1, p. 234-254, 2018.
Tropicália. Direção de Marcelo Machado. São Paulo: BossaNovaFilms e Record Entretenimento, 2012 (82 min).