O príncipe Carataco: nacionalismo e construções ideológicas do masculino a partir do século XVI

Olá pessoal, tudo bem com vocês? Nós estávamos um pouco afastados, nos organizando frente a este cenário que estamos vivendo, mas com saudades desse nosso espaço aqui. Voltamos hoje com algumas novidades. Iremos postar nos próximos dias materiais para didáticos que podem auxiliar nossos colegas professores na tarefa de organizar as aulas não presenciais. Hoje, ficamos com a dica de leitura de Mariana Fujikawa: “O príncipe Carataco: nacionalismo e construções ideológicas do masculino a partir do século XVI”, escrito por Renato Pinto.

Esperamos que estejam todos bem ! Cuidem-se!

Gravura: Caractacus before the Emperor Claudius at Rome, c. 1800. A força física de Carataco contrasta com a fragilidade e afetação do imperador Cláudio. Imagem e descrição retiradas da tese de Renato Pinto “Duas Rainhas, um Príncipe e um Eunuco: gênero, sexualidade e as ideologias do masculino e do feminino nos estudos sobre a Bretanha Romana”.

O respectivo texto compõe a obra Antiguidade como presença: Antigos, Modernos e Usos do Passado, organizada e revisada por Glaydson Jose da Silva, Pedro Paulo A. Funari e Renata Senna Garrafoni. Nesse, Pinto discute como o príncipe bretão Caracato foi ressignificado nas artes e no meio acadêmico como um símbolo de masculinidade. Aponta o autor que a representação de sua imagem serviria aos propósitos do Estado inglês que estava nascendo nesse contexto e seu modelo de masculinidade seria ressaltado como uma virtude herdada pela modernidade inglesa.

O autor ressalta que essa pesquisa é possível devido ao fato de que nas últimas décadas houve um aumento nas publicações e pesquisas que debruçam-se sobre o masculino. Afirma, ademais, que os discursos que se pretendem como hegemônicos hierarquizam o mundo.

Carataco teria sido um príncipe, que, ao ser utilizado, ajudou a construir essas noções de hegemonia sobre o que deveria ser o masculino: ele seria um bretão que resistiu a conquista do Império Romano, mas que fora – afinal – capturado. Porém, afirma Tácito que Caracato comandava com tão forte autoritária e era tão afeiçoado ao seu povo que o imperador romano Claudio teria o perdoado e deixado que vivesse.

Essa figura do bretão como um líder da resistência foi importante em um contexto em que a Inglaterra estava em constante conflito com a França, com o movimento de independência americana e de outros povos das ilhas britânicas.

Por fim, conclui Pinto que os ideais de masculinidade e de feminilidade foram construídos. A retomada de figuras do passado, como a de Caracato, serviu como um importante aparato ideológico de legitimação das normas de conduta das mulheres e também dos homens. Ademais, finaliza seu artigo ressaltando que os conceitos dos Usos do Passado são importante referencial teórico-analítico dessas questões.

PINTO, Renato – “O príncipe Carataco: nacionalismo e construções ideológicas do masculino a partir do século XVI.” In: FUNARI, Pedro Paulo; GARRAFFONI, Renata Senna; SILVA; Glaydson José. Antiguidade como presença: Antigos, Modernos e Usos do Passado. Curitiba: Editora Appris, 2019.

  • Mariana Fujikawa

História Antiga e usos do Passado. Um estudo de apropriações da Antiguidade sob o regime de Vichy (1940-1944).

Glaydson José da Silva é historiador e professor da Universidade Federal de São Paulo; seu livro História Antiga e usos do Passado. Um estudo de apropriações da Antiguidade sob o regime de Vichy (1940-1944) é uma versão revisada de sua tese de doutorado na qual analisa como a modernidade pode usar o passado.

O assunto geral é o regime de Vichy e o objeto de análise o passado gaulês, romano e galo-romano usado para justificar a dominação alemã e o colaboracionismo francês com a Alemanha na Segunda Guerra Mundial. As fontes são materiais da época, como livros acadêmicos, livros de vulgarização científica, manuais de História e de Arqueologia, jornais, revistas, discursos, textos oficiais, correspondências, cartazes, moedas e outros.

Resumindo, o texto discute as noções de herança e de legado a fim de explicar como se constituem os mitos fundadores, os quais perpetuam valores e imagens da vida nacional, com o objetivo de criar identidades pelo uso da ideia de permanência. Além disso, aborda como a História e a Arqueologia assumem um papel importante nesse contexto, pois estão a serviço do Estado e permitem qual tipo de memória se pode (re)construir – uma tradição de apropriação do passado em prol do governo com dimensões gigantescas nos séculos XIX e XX, principalmente durante as duas grandes guerras.

A obra trata, em especial, do caso francês a partir do nascimento do herói Vercingetórix na escrita da História francesa, desde o fim da Revolução de 1789 até a Segunda Guerra Mundial. Em síntese, reflete sobre como na França a disciplina histórica está atrelada à memórias construídas durante a elaboração da identidade nacional e, também, constitui-se em uma História mitológica – afinal, cria mitos de origem – encontrada principalmente na escola, espaço ideal de divulgação e popularização, e tendo na política sua primeira finalidade já que são controladas por discursos desse gênero.

Já atualmente, como se pode ler no livro, esse mito gaulês continua sendo veementemente defendido pelo partido de extrema direita F.N. A sua juventude nacionalista e racista, um exemplo, orgulha-se em exaltar suas origens gaulesas na internet, em camisetas, prospectos, letras de músicas e outros. Sendo que esse uso feito pelo partido do passado ainda é pouco estudado.

Com isso, a pergunta de conclusão do texto é: qual lugar a antiguidade ocupa em nossas sociedades? Questão que permite pensar sobre o ofício do historiador, principalmente o do mundo antigo, e se encaixa nas recentes discussões sobre o presentismo da História. Enfim, a importância de indagar acerca desse lugar permite notar a utilização da História a serviço de certa lógica justificadora e legitimadora de questões identitárias, nacionais, raciais e políticas.

Referências

História Antiga e usos do Passado. Um estudo de apropriações da Antiguidade sob o regime de Vichy (1940-1944). São Paulo: Annablume; FAPESP, 2007.

  • Camilla Miranda Martins

Boudica e o Brexit: o clássico como apelo retórico

“Está na hora de Theresa May encontrar sua Boudica interior”. A frase, publicada em outubro de 2018 pelo jornal britânico The Sun, veio acompanhada da imagem do post, isto é, a estátua icônica de Boudica modificada com o rosto de Theresa May.

Não é de hoje que os britânicos resgatam a figura de Boudica. A situação de mulheres no poder, recorrente no país, motivou a referência antiga em diferentes contextos, sendo a rainha Vitória e as sufragistas dois grandes exemplos. O lugar de Boudica na memória nacional britânica é bastante importante: um símbolo de força feminina e resistência ao poder romano, bem como de luta contra abusos e injustiças. Todas essas associações acompanham o uso de sua figura, em maior ou menor grau, por Nick Timothy, autor da matéria em questão.

No entanto, The Sun não foi o único a publicar essa associação. Nigel Nelson, editor político da Mirror, também escreveu sobre as ligações de Boudica e May. Ele trouxera, em 2016, mais referências históricas da revolta, apelando para que a ex primeira-ministra usasse de elementos surpresa assim como o fez Boudica ao destruir três cidades importantes da Bretanha.

Acompanhada de momentos de ruptura na história britânica, Boudica foi usada em contextos de mudança política, nesse caso como propulsora da defesa contra o que seria o domínio da União Europeia sobre o Reino Unido – como, em 60 d.C, o domínio do Império Romano sobre os Icenos.

Longe do conturbado Brexit, Boudica foi uma líder guerreira do século primeiro, na ilha onde hoje é a Inglaterra. Conhecemos muito pouco sobre sua figura através dos textos de Tácito (Agrícola e Anais) e Cássio Dio (História de Roma), que dedicam breves parágrafos ao que acreditavam ser essa mulher. Nenhum dos dois esteve na Bretanha, e é importante mencionar quão estranho soava aos ouvidos romanos a liderança feminina. Mesmo assim, suas narrativas e descrições são a fonte da ampla tradição sobre essa heroína nacional que se tornou Boudica.

Dos pequenos fragmentos e vestígios arqueológicos da revolta, sabemos que o Império Romano ocupava a ilha pouco antes de sua eclosão, e que Boudica estava ao lado do rei Prasutagus na liderança de uma importante tribo da região, os Icenos. O motivo da revolta, segundo Tácito, foi a quebra do pacto que os romanos estabeleceram com Prasutagus, que era um rei cliente de Roma. Em outras palavras, estava associado ao Império mas continuava nominalmente livre. Após a morte do rei, Tácito conta sobre o abuso da violência e autoridade pelas tropas romanas, que desrespeitaram o pacto e invadiram o território dos Iceni, violentando Boudica e suas filhas. Em sua narrativa, então, ela lidera tropas na destruição de Camulodonum, Londinium e Verulamium, e profere um importante discurso sobre “vingar a liberdade perdida”.

É nesses termos que Nelson e Timothy escreveram sobre Theresa May. Transportando a vingança da liberdade perdida ao Reino Unido do século XXI, trouxeram ainda referências imagéticas da relação, via charge e montagem em questão. A estátua de Boudica modificada mexe com um importante símbolo localizado em frente à House of Commons, baixo parlamento inglês. Trata-se, portanto, de um apelo a fortes símbolos nacionais para colocar em Theresa May a responsabilidade de agir conforme a figura histórica: “é seu momento de Boudica, Theresa”.

  • Cassiana S. Maciel

Para saber mais:

This is your Brexit Boudicca moment, Theresa (matéria em inglês no site do The Sun) – https://www.thesun.co.uk/news/7501794/this-is-your-brexit-boudicca-moment-theresa-its-time-to-say-on-your-way-barnier-like-up-yours-delors/

Theresa May leading the all woman charge for Britain’s top politics jobs (matéria em inglês no site Daily Mirror) https://www.mirror.co.uk/news/uk-news/theresa-leading-woman-charge-britains-8336505

Boudica em Mulheres Escondidas pela História, artigo de Taís Bagoto Belo- https://www.academia.edu/15262180/Boudica_em_Mulheres_escondidas_pela_Hist%C3%B3ria

Boudica e as facetas femininas ao longo do tempo: nacionalismo, feminismo, memória e poder, tese de doutorado de Taís Bagoto Belo – http://repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/281233?mode=full