É com grande alegria que anunciamos nossa terceira coletânea de trabalhos – resultado direto dos eixos temáticos desenvolvidos por nosso Grupo de Estudos, História Antiga e Conexões com o Presente. Neste volume de textos, produzidos ao longo do segundo semestre de 2021, buscamos trabalhar a presença da Antiguidade na música. Portanto, nossos principais objetivos, além de reunir toda a nossa produção 2/2021 em um único material, é elaborar uma forma interativa de pensar a antiguidade a partir das mídias digitais. Para isso, juntamente dos escritos apresentados, criamos uma playlist no Youtube e no Spotify, facilitando ouvir as canções citadas durante a leitura dos textos. Para acessá-la, basta baixar nosso material e escanear os QrCodes disponíveis ou entrar em nosso canal do Youtube!
Imagem de divulgação do Instagram @antigaeconexoes
Dando sequência aos textos sobre música e recepção da antiguidade, hoje traremos a figura do cantor Zé Ramalho e seu uso dos mitos antigos nas canções.
Dos diversos atributos que a mídia confere ao revolucionário cantor e compositor paraibano Zé Ramalho, recebem maior destaque seus aspectos místicos e visionários, que bradam um discurso de resistência a norma e ao “verdadeiro” estabelecidos pela parte dominante da sociedade. Na elaboração de suas canções, o autor mistura sons que vêm do Rock com métricas e melodias próprias do sertão, ao mesmo tempo, cria estruturas que transmitem um sentimento de anunciação aos ouvintes. Em sua identidade poética, o cantor também utiliza de referências a antiguidade clássica em diversas de suas músicas. Se aproveitando principalmente dos mitos gregos, produziu sentidos atuais para os contos lendários a partir da elaboração de alegorias e comparações.
Acentuando sua face visionária de mensagens apocalípticas, anúncios de liberdade e visões de futuro, Zé Ramalho se engaja politicamente mais uma vez ao lançar seu terceiro álbum em 1981, “A Terceira Lâmina”. Como fala Petrônio Fernandes Beltrão, “a profecia agonizante de um devir de liberdade ante a situação social do Brasil na época da ditadura militar”. (BELTRÃO, 2012). Das faixas desse álbum, a canção “Filhos de Ícaro”, que já em seu título traz consigo o mundo antigo, é uma crítica incisiva não somente ao regime, como também à alienação e acomodação da população brasileira diante da situação do período.
No conhecido mito, Ícaro e seu pai, Dédalo, acabaram aprisionados no labirinto que eles mesmo haviam construído na ilha de Creta para recluir o Minotauro. Na tentativa de fuga, os dois elaboraram asas feitas de cera para que pudessem voar para fora das paredes do labirinto. Entretanto, Ícaro, ignorando os conselhos do pai para não voar muito perto do Sol, se aproximou do astro que, com o calor, derreteu suas asas e acabou por matar Ícaro ao derrubá-lo no mar.
Zé Ramalho, na música citada, canta os seguintes versos:
“As alturas merecem todas as asas Homens de plumas Antes do sol derreter As unhas desse meu pássaro”
Em sua crítica ao povo por sua neutralidade em relação a ditadura, Zé Ramalho faz uma alegoria do povo como Ícaro e do regime militar como o Sol. O cantor pede para que “façam coisas pela liberdade” sem se deixarem levar pelos ideais do regime que atraíam parte da população. Caso contrário, assim como Ícaro caiu no mar ao tentar admirar o Sol de perto, os cidadãos poderiam acabar “caindo” no discurso da ditadura se decidissem por aceitá-la de forma neutra.
Se pensarmos os poetas gregos da antiguidade como transmissores de uma memória coletiva através da tradição literária cantada, podemos pensar também no sujeito-cantor Zé Ramalho como um escritor que, transcrevendo o mito antigo para seu mundo atual, performa suas mensagens em nome de causas sociais e atribui novos sentidos a essa esfera da história clássica. Dessa forma, ao adaptar o mito, Zé Ramalho acaba por criar uma releitura da antiguidade em seu cenário contemporâneo.
Link da música
Bibliografia consultada
BELTRÃO, P. F. A Insurgência, o Visionarismo e a Nordestinidade como marcas identitárias do Sujeito-Poeta-Cantor Zé Ramalho. 2012. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal da Paraíba.
VERNANT, Jean-Pierre, 1914. Mito e religião na Grécia antiga. Trad. Joana Angelica D’avila Melo. São Paulo: Martins Fontes, 2006.